HISTÓRIAS DE QUEM TRABALHA E CUIDA DO “LUGAR SAGRADO”
“Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”
Esta semana vamos fazer concorrência ao nosso vizinho Amor Moderno. Não é que haja problema de vizinhança, muito pelo contrário. Os rapazes e as raparigas não incomodam o prédio, têm o condomínio em dia, não fazem festas exorbitantes, respeitam a lei do silêncio, não têm animais domésticos e cuidam da higiene pessoal. Há, porém, diferenças substantivas entre o Amor Moderno e um passado recente dos tribunais portugueses chamados a pronunciar-se sobre o amor e o fim dele. Enquanto os modernos olham para o amor como um estado que transcende a própria racionalidade humana, os tribunais são mais pragmáticos.
Por exemplo, na crónica de 5 junho de 2016, Jasmine Jaksic, programadora na Google, contou: “Ele disse que queria vir viver comigo permanentemente. Sem conseguir apresentar nenhuma razão lógica para que tal não acontecesse, concordei. Algumas semanas mais tarde, ele pediu-me em casamento e casámo-nos um ano depois. Nos dois anos seguintes o nosso diagrama de Venn de círculos quase sobrepostos tem-se mantido intacto”.
Bonito. Devido à falta de meios, não é possível fazer uma investigação à jurisprudência estrangeira. Por cá, porém, o casamento e o amor nem sempre correm bem. Em 2007, o Supremo Tribunal de Justiça (processo 07A2982, 2007) teve de analisar um caso de divórcio, em que claramente não existia nada parecido com o diagrama de Venn. “É de repartir as culpas, em igual medida, quando ambos os cônjuges se maltratam, passando um deles a ausentar-se de casa por largos períodos e a receber em casa, na ausência do outro, e com frequência, pessoa do sexo oposto, saindo o outro cônjuge entretanto da casa de morada de família para passar a viver com outra pessoa.” É a dividir, mas os juízes não deixaram de censurar particularmente a mulher. As agressões verbais eram recíprocas, disseram, mas “imputar ao marido que ‘nem para f... servia’ é de uma rudeza tão avassaladora que deixa a léguas de distância todas as outras agressões verbais, porque é a única que verdadeiramente atinge o âmago da masculinidade”. Podem chamar-nos de tudo menos tocar na competência da santíssima trindade.
O próprio Amor Moderno, em conversa de escada, já tinha abordado a problemática das separações. Mas para o vizinho tudo decorre tranquila e serenamente, sem sobressaltos. Vejamos: “Os vizinhos param-nos por vezes e fazem perguntas cautelosas. O nosso comportamento é tão calmo e tranquilo que eles devem sentir a necessidade de confirmar novamente a nossa separação. Depois dão-nos os parabéns por uma separação tão bem conseguida. E eu aceno afirmativamente em silêncio”, escreveu Laura Pritchett na edição de 29 de maio de 2016.
Quando entra em cena um casal português, as coisas podem ser bem diferentes. “Há violação culposa do dever de respeito quando um cônjuge afirma que o outro praticou furtos, frequenta bruxas, tem baixeza moral, ignorância crassa, falta de educação, sensibilidade, bom gosto, deontologia, equilíbrio psíquico e honestidade; e também há violação culposa desse dever por parte do cônjuge ofendido quando disse ao outro ser mau professor, mau advogado, burro, cabrão, vigarista e chulo” (processo 9750783, Tribunal da Relação do Porto, 2001).
“Eu já não te amo. Nem sequer tenho a certeza de alguma vez o ter feito. Vou sair de casa. As crianças vão entender. Elas vão querer que eu seja feliz.” Aqui está, como contou Laura A. Munson (edição de 28 de agosto de 2016), uma forma civilizada de terminar um casamento. Primeiro, o fim do sentimento. Em seguida a decisão de abandonar o lar, por fim o cuidado com as crianças e como contar-lhes a separação. Tudo muito bem. Os homens cá do burgo optam por outro tipo de linguagem, estabelecendo também outras prioridades para o rompimento conjugal: “O réu disse à autora repetidas vezes tu não sabes cozinhar, a comida que tu fazes é uma merda, e por diversas vezes atirou pratos com comida que ela tinha feito à parede, reiterando a comida que tu fazes é uma merda” (Supremo Tribunal de Justiça, 2005).
No Amor Moderno, as mulheres aproveitam o espaço para descrever o seu bem-sucedido percurso profissional. “A minha vida profissional era a minha identidade. (...) Seguia no encalço da próxima promoção ou do próximo trabalho, tornando-me diretora aos 30 anos e diretora executiva de marketing aos 40”, descreveu Sharon Pope (2 de abril). A vida profissional de uma mulher portuguesa pode ser um pouco mais agreste, como consta de um acórdão da Relação do Porto (1991): “A trabalhadora que no vestiário da empresa perguntou a uma colega quem lhe dissera que andava metida com o azeiteiro, a agarrou pelos cabelos, fez bater a sua cabeça nos vestiários e a fez bater no corpo de outra trabalhadora, que a chamou porca e badalhoca, praticou atos constitutivos de justa causa de despedimento.”
Enquantos os modernos olham para o amor como um estado que transcende a própria racionalidade humana, os tribunais são mais pragmáticos