Diário de Notícias

Piratas do ar

- JOÃO ALMEIDA MOREIRA JORNALISTA

Junho de 2013, protestos violentos nas ruas. Era o prólogo das crises política e económica que o Brasil viveria nos anos seguintes. Nada de mais normal, portanto, que Renan Calheiros, então presidente do Senado Federal e terceira figura do Estado, apanhe um avião da Força Aérea de Brasília ao Recife. Dada a situação de emergência nacional, certamente para tratar de um assunto inadiável de Estado. E deixemo-nos de demagogias: num país com o dobro da área da União Europeia, tão grande que a certos pontos distantes da Amazónia se demora semanas a chegar, um funcionári­o público de topo andar de avião estatal para resolver problemas em tempo de crise não pode ser considerad­o um luxo.

Na verdade, a viagem justificou-se: já regressado a Brasília, Renan Calheiros apresentou-se numa conferênci­a de imprensa para anunciar cortes de gastos no Senado, uma das exigências das ruas naquele junho, remoçado. Sim, havia um frescor na aparência do senador. Algo subtil, mas o quê, ao certo? Ninguém sabia dizer, mas havia, sim, qualquer coisa. A resposta soube-se mais tarde: 10 118 fios de cabelo. Renan Calhei- ros submeteu-se ao implante capilar de 10 118 fios de cabelo no Hospital Memorial, no centro do Recife, onde opera o reputado especialis­ta Dr. Fernando Basto. Daí a expedição emergencia­l à custa do contribuin­te a meio da crise de junho de 2013.

Costuma dizer -se que no melhor pano cai a nódoa, mas no caso de Calheiros, a expressão mais correta, tal o seu cadastro, seria na pior nódoa cabe sempre mais uma. O expresiden­te do Senado do Brasil responde a 11 acusações no Supremo Tribunal Federal, oito delas no âmbito da Operação Lava-Jato, que investiga o escândalo da Petrobras, e na qual já é réu. Das outras três acusações, a mais picante é a do caso em que Renan pagava o aluguer da casa da amante e da filha fora do casamento com dinheiro de uma construtor­a que lhe devia favores enquanto governador do Alagoas.

A viagem de Renan foi lembrada há semanas, a propósito de uma outra do governador do estado de Minas Gerais, Fernando Pimentel, com um helicópter­o de Estado à luxuosa estância Escarpas do Lago para ir buscar o seu filho acabado de sair de uma festa do tipo das dos finalistas em Torremolin­os. Sucede que dias antes, Pimentel havia decretado situação de calamidade financeira no estado que administra – os salários da função pública do fim do ano passado estão a ser pagos em parcelas.

Indo mais fundo no problema, o jornal Folha de S. Paulo concluiu que noutro poder público, o judicial, os principais tribunais do país gastaram 7,3 milhões de reais (2,2 milhões de euros, aproximada­mente) em viagens aéreas em 2015. Um dos juízes do Supremo fez 13 travessias, segurament­e essenciais, ao estrangeir­o; um outro, do Tribunal de Contas, esteve em Tbilissi numa reunião fundamenta­l com auditores fiscais da Zâmbia, do Iémen, da Moldávia e das ilhas Fiji. “Tudo dentro da lei”, respondem secamente os visados.

A mesma resposta de Aécio Neves, o candidato derrotado à presidênci­a em 2014, que efetuou no jato oficial 124 viagens, entre quintas-feiras e domingos, ao soalheiro Rio de Janeiro quando era governador de Minas Gerais.

Sérgio Cabral, o cleptocrat­a governador do Rio de 2007 a 2014 que desviou 224 milhões de reais (cerca de 65 milhões de euros) durante a sua gestão, fazia de helicópter­o o percurso diário de nove quilómetro­s entre o Palácio das Laranjeira­s, onde trabalhava, e o Leblon, bairro nobre onde morava – hoje habita no Complexo Prisional Gericinó, em Bangu.

A Procurador­ia-Geral da República em novembro examinou 160 mil voos no poder legislativ­o entre 2007 e 2009 antes de denunciar 443 ex-deputados por viagens de férias ao estrangeir­o ou transporte de parentes usando verbas públicas na chamada “farra das passagens”.

Perto dos assaltos multimilio­nários em terra firme à Petrobras, estes roubos pelos ares correspond­em, no total, a uns milhõezinh­os: são a tal demagogia num país com o dobro da área da União Europeia. Mas é também com estes pormenores, altamente sintomátic­os, que a dívida pública do país cresce. E o cabelo de Renan também.

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