A alma europeia no seu labirinto
Numa altura em que a Europa e o Ocidente em geral parecem estar não só a mutilar-se no corpo, mas a desfigurar-se nos valores mais profundos do que poderíamos designar como a sua alma, um académico português está a realizar um amplo exercício de revisitação e resgate dos conceitos, símbolos e narrativas que tornam possível falar de uma comum identidade ocidental. Traduzir Homero para uma língua moderna é uma empresa rara e absorvente. Deveria ser desafio para equipas de especialistas. Fazê-lo num longo trabalho solitário e depois lançar-se, também apenas com as suas próprias forças, para uma aventura ainda mais gigantesca, traduzir a Bíblia, implica uma coragem, uma tenacidade, e sobretudo um capital de conhecimento em múltiplos domínios, que não apenas o linguístico, que não me parece ter qualquer paralelo nem em Portugal nem em nenhum outro país. Frederico Lourenço, Prémio Pessoa 2016, é o herói desta sucessão de proezas intelectuais de que o país beneficia desde há longos anos.
A objeção mais comum que se ergue contra os estudos clássicos, como bem recordava Frederico Lourenço ao receber o referido prémio, é a da sua aparente inutili- dade. Contudo, tanto os textos fundamentais do património helenístico e latino como a tradição judaico-cristã dos estudos bíblicos constituem a chave de acesso ao software profundo que estrutura o nosso pensamento, a nossa linguagem, os nossos juízos estéticos, os nossos atos éticos e políticos, até os nossos gestos de violência e desmesura. É impossível não atribuir, pelo menos parcialmente, à amnésia sobre as nossas raízes culturais que tem crescido no último século alguma responsabilidade no processo de entropia que parece agitar as nossas sociedades. O esquecimento e a loucura acompanham a incapacidade de reconhecer os sinais de perigo que só a presença vigilante da tradição cultural e da experiência histórica ajudam a identificar. O mundo contemporâneo coloca a Europa e o Ocidente perante inadiáveis tarefas de dimensão global, no ambiente, na economia, na segurança, na procura da justiça, que só num enérgico trabalho conjunto poderiam ser levadas a cabo com esperança de sucesso. A mediocridade arrasadora das atuais lideranças, e a entontecida e chauvinista retórica da fragmentação, fechando os olhos a perigos cada vez mais iminentes, mostra que a loucura está já a colher os seus frutos.
Na Ilíada e na Odisseia, hoje acessível aos leitores portugueses nas traduções de Frederico Lourenço, podemos confirmar que a procura da verdade é a marca crucial do código genético da Europa. A mitologia da “pós-verdade” é completamente estranha – a não ser como patologia – a uma cultura que fundou a sua literatura numa obra que relata epicamente uma guerra entre gregos e troianos sem nunca deixar que a narrativa se incline, facciosamente, para o lado dos vencedores. Com efeito, Homero surpreende por captar objetivamente traços universais da condição humana e tratar com igual dignidade Heitor, herdeiro de Troia, e Aquiles, o herói grego. Se o valor da verdade resplandece no helenismo, a urgência de saber viver em paz com os que nos são diferentes foi aprendida nos rios de sangue das guerras civis religiosas, associadas às traduções bíblicas que marcam a segunda refundação da Europa com a Reforma Protestante iniciada há meio milénio. Por esses dois motivos e valores – verdade e tolerância – talvez não exista melhor antídoto contra o alarido dos novos bárbaros do que o solitário e prodigioso trabalho de Frederico Lourenço, que honra e aprofunda a herança da falecida Maria Helena Rocha Pereira.