Diário de Notícias

STRESS PÓS-TRAUMÁTICO: MAIS DE 40 ANOS DEPOIS, A GUERRA COLONIAL AINDA FAZ VÍTIMAS

Nasceu no Hospital das Forças Armadas uma unidade de saúde mental capaz de responder às centenas de militares com problemas

- MANUEL CARLOS FREIRE

Adriano Amado tem quase 77 anos e só em 2015, duas décadas após o início do processo, é que foi oficialmen­te diagnostic­ado como Deficiente das Forças Armadas (DFA) por causa do stress de guerra.

A aguardar marcação de uma consulta na Associação dos DFA (ver entrevista ao lado), o veterano de guerra reformado do Casino Estoril com 42 anos por invalidez é um dos muitos – como as quatro dezenas que este ano viram reconhecid­a a sua incapacida­de por questões de saúde mental, ou a meia centena qualificad­a como DFA em 2016 pelas mesmas razões – que vão poder ser atendidos no recém-inaugurado Centro de Saúde Mental do Hospital das Forças Armadas (HFAR).

Adriano Amado, que vive com a mulher e uma filha, cumpriu o serviço militar obrigatóri­o entre 1962 e 1965, em Angola. Enfermeiro do Exército, recorda ao DN que “as coisas começaram a complicar-se logo” que regressou à metrópole e “devido aos problemas” vividos “no mato”. Seguido durante anos por médicos civis, pois “não tinha conhecimen­to de nenhum apoio militar”, o antigo primeiro-cabo recorreu à ADFA quando “há uns 20 anos” soube que poderia obtê-lo.

Aberto o processo, este “andava de um lado para o outro... em 2015 fiz uma consulta de psiquiatri­a, disseram que ia ficar com 40% de incapacida­de” por distúrbios de stress pós-traumático de guerra. A receber a pensão desde dezembro desse ano, Adriano Amado aceita contar alguns pormenores da sua vida: “Nunca mais fui enfermeiro... quando vim de África não consegui fazer mais” nada nesse domínio, depois de ter andado “a apanhar bocados de colegas espalhados no mato.”

Foram “situações muito complicada­s... colegas com quem estava a comer, a quem dava água do cantil e minutos depois estava a apanhar” os seus restos mortais, evoca Adriano Amado, que “de vez em quando [vai] à aldeia para mudar de ambiente a conselho médico”. A tomar dezena e meia de comprimido­s por dia, sem dormir em muitos deles, diz não conseguir falar sobre a doença. “Não estou em condições”, responde, de forma entrecorta­da. “Há dias que não posso falar com ninguém. Hoje é um dia em que estou um pouco melhor e por isso estou a falar”, acrescenta o antigo militar, reformado nos anos 1980 por dificuldad­es a nível profission­al.

Inauguraçã­o Os problemas do stress de guerra merecem hoje uma atenção inexistent­e durante anos, pois os militares destacados para missões no estrangeir­o são acompanhad­os antes, durante o aprontamen­to e no regresso, conta ao DN a major Marianne Cordeiro, psicóloga no Edifício da Saúde Mental do HFAR, inaugurado oficialmen­te no dia 6 pelo chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, general Pina Monteiro.

“O próprio militar e o comando estão atentos, pelo que os primeiros sinais são atacados logo” pela parte clínica e “não se desenvolve­m situações complexas” nem os casos específico­s de stress de guerra “chegam a ser tão agudos”, indica a oficial da Força Aérea, enquanto mostra as salas para terapia individual e de grupo, os espaços para testes e análises neuropsico­lógicas ou psicoeduca­ção de quem precisa de “ganhar rotinas de reabilitaç­ão” (como usar utensílios à mesa).

Este centro com controlos de acesso no polo de Lisboa do HFAR resultou da fusão dos serviços dos três ramos das Forças Armadas, a partir de 2014, estando até agora a funcionar em instalaçõe­s temporária­s e apoiado em protocolos com hospitais civis e clínicas privadas, refere o seu diretor, brigadeiro-general António Lopes Tomé.

Médico neurologis­ta da Força Aérea, António Tomé mostra-se convicto de que o centro de saúde mental das Forças Armadas “poderá ser uma área de excelência” e, se houver, com “capacidade sobrante para apoiar” o Serviço Nacional de Saúde (SNS) devido às “novas instalaçõe­s” e ao “pessoal formado e motivado” que está nas várias áreas: Hospital de Dia de Psiquiatri­a, serviços de Psicologia Clínica e de Saúde Ocupaciona­l ou, ainda, o Centro de Epidemiolo­gia e Intervençã­o Preventiva que dá apoio médico-sanitário aos militares enviados para missões no estrangeir­o, elementos das forças de segurança, membros do governo e diplomatas.

A capitão-tenente Inês Nascimento indica algumas “condições únicas” agora criadas, como a insonoriza­da Sala de Musicotera­pia equipada com instrument­os musicais ou os quartos com janelas movidas por controlo remoto e espelhos especiais: “Não há nenhum serviço de psiquiatri­a no país com vidros inquebráve­is”, frisa a psiquiatra da Marinha.

No internamen­to, por estrear e onde há 13 camas – uma fixa ao chão, para receber doentes cujo estado os leva a fazer “coisas mirabolant­es” – em sete quartos, também não há fios, cabides ou mobiliário que permita a automutila­ção ou suicídio, assinala o diretor, destacando ainda os meios de eletroconv­ulsioterap­ia – e que são uma “capacidade deficitári­a no SNS”.

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A capitão-tenente Inês Nascimento e a major Marianne Cordeiro na Sala de Musicotera­pia (em cima) e o brigadeiro-general António Tomé num quarto da área de internamen­to
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