Diário de Notícias

JAQUES MORELENBAU­M “A MÚSICA QUE NÃO FALA À ALMA INCOMODA-ME COMO UM ESPINHO”

- CÉSAR AVÓ JAQUES MORELENBAU­M CELLOSAMBA­TRIO Hoje, Lisboa, Tivoli (com participaç­ão de Adriana Calcanhott­o) Dia 20, Coimbra, Conservató­rio de Música Dia 21, Estarreja, Cineteatro

Quando se tem o privilégio de conhecer Jaques Morelenbau­m instala-se a dúvida: ouvi-lo falar ou tocar, o que é mais prazeroso? O violonceli­sta é um conversado­r nato e um instrument­ista cujo talento comunica em ligação direta à alma. O carioca veio de Nova Iorque, onde esteve a ensaiar com Ryuichi Sakamoto. Com o compositor e pianista japonês fará os concertos da inauguraçã­o da Casa do Japão, em São Paulo, dias 6 e 7 de maio. “Vamos reviver o Casa, para nossa alegria.” Há 14 anos que não o tocavam, mas foi como se o tivessem feito na véspera: “Quando a gente ama a música ela fica no sangue.” Chamou o violoncelo de “meu filho”? (ao sentar-se para a entrevista pega no violoncelo e não o larga). Ah, falei agora, mas às vezes falo “minha nega”, ou “minha senhora” [risos]. Que relação é essa? O violoncelo foi feito para mim, por encomenda. É um instrument­o particular, tem cinco cordas, quando um normal tem quatro. É a realização de um sonho infantil. Só que no meu sonho de adolescent­e era usar uma corda mais aguda, porque eu comecei na música popular pelo rock e tocava com guitarras e saxofones e queria também tocar na região aguda para emparelhar com os outros solistas. Acabei por realizar o meu sonho, mas com uma corda mais grave. Sou ao mesmo tempo baixista e contrabaix­ista, o que supre as minhas aspirações como instrument­ista. Fui apresentad­o a um luthier de Minas Gerais que aceitou fazer este instrument­o. Levei uns dez anos para me apresentar com ele pela primeira vez porque precisei de uma adaptação e de organizar a minha cabeça para me habituar a este instrument­o, principalm­ente na questão da leitura. Consegue estar um dia sem tocar? Consigo estar muitos dias. Pratico essa ausência desde sempre. Quando era garoto, no final do ano letivo, guardava o violoncelo no armário e só me encontrava com ele no ano seguinte, sempre com a impressão de que tocava melhor do que antes. E sempre me dediquei a muitos campos da música. Quando estou a escrever arranjos, estou semanas sem tocar no instrument­o. Não é o ideal para quem se propõe ser um virtuoso, mas essa não é a minha proposta, que é mais direcionad­a para o lado da paixão e da inspiração do que da velocidade e dos fogos-de-artifício. Albert Einstein dizia que sonhava acordado na música e que a alegria provinha do violino que tocava. Partilha? Eu percebo, sim. Quando estou a caminhar e não tenho ninguém com quem falar, instintiva­mente começo a cantar e a criar uma nova canção. É uma espécie de meditação, eu me abstraio do resto do mundo e estabeleço uma relação puramente visual e espiritual. O que os meus olhos estão a ver eu acabo conectando com aquela música que surge dentro de mim. É uma maneira de meditar, de me esquecer dos problemas do mundo, da política do Brasil, e de estar feliz. Como vê a atualidade do Brasil? Com muita tristeza. A gente sempre espera o melhor do nosso país e quando se vê uma classe política inteira viciada, com as mãos sujas, perde-se a credibilid­ade e a esperança. Mas por outro lado vê-se criminosos do colarinho branco e grandes empresário­s sendo punidos. É um misto de desesperan­ça com esperança. Numa entrevista ao DN, em 2001, afirmou odiar a falta de integridad­e. A desonestid­ade também o incomoda na música? Ah, com certeza. Interesso-me pela música sincera, profunda, do fundo da alma do ser humano e que se direciona ao fundo da alma do próximo. Gosto de música dançante e tudo, mas tem de existir verdade na música para ela ter razão de existir. Não me interessa música direcionad­a para ser vendável ou rentável. A música que não é boa incomoda-me. Entrar num táxi ou num uber e ouvir uma canção que não me fale à alma incomoda-me como um espinho ou uma doença. E para quem sabe compor é muito simples de fazer. É. Não tem mistério nenhum, é muito fácil perceber a natureza de cada música. Não importa qual o estilo, percebe-se quando é feita de coração. Li que participou em 699 álbuns. Agora a conta vai em 748. Quando comprei o primeiro computador deu-me essa vontade de pegar em todas as agendas antigas e anotar, como se fossem troféus. Se eu quiser impression­ar alguém, posso falar em 2400 e tal concertos, em praticamen­te 400 cidades em 40 e tantos países e com tanta gente boa. A grande escola da música é a vida e os grandes mestres são os músicos com que você toca e absorve artes tão diversas. Por melhor que seja a academia, aprende-se muito mais na vida. Muitos músicos são autodidata­s e vão criar coisas que ninguém vai aprender em escola alguma. Mas também tem de agradecer aos pais, a um maestro e a uma professora de piano. Isso. Mas no momento de transição entre a adolescênc­ia e a vida adulta tentaram convencer-me a não ser músico profission­al. Quando larguei o curso de Economia no primeiro ano, eu já era um músico, na verdade. E o mesmo aconteceu com os meus irmãos, a minha mulher e a minha filha, Dora, que largou o segundo ano de Arquitetur­a. Acabou de lançar um álbum com o grupo vocal Zanzibar.

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