VALÉRIO ROMÃO “O AUTISMO É A FORMA DE O MUNDO NOS DIZER QUE CONTROLAMOS MUITO POUCO”
Publicou em 2012 o romance Autismo, um livro-choque. O tema é o autismo, uma história dura. Não está com paninhos quentes. A dureza tem mais a ver com a história do que com a forma. Espero que a forma seja justa, sem qualquer dispositivo para prender o leitor por uma via emocional. É um relato. É um romance, não é um diário, não é um ensaio, não é um livro de ajuda. Tem a sua quota-parte de realidade. De autobiografia? Autobiografia, embora mascarada por tudo quanto é ficção e porque só quem me conhece bem sabe qual é a parte ficcionada e a parte real. Esse escudo é confortável. Este romance está agora em segunda edição, estava esgotado. Foi traduzido em França em 2016 e foi finalista do Prémio Femina. É esquisito ver o primeiro romance chegar lá acima? Inibe futuras escritas? Quando o editor da Abysmo, João Paulo Cotrim, decidiu publicar o Autismo, perguntou-me se estava a escrever outra coisa, porque às vezes o segundo romance tem um parto mais complicado. Na altura, já estava praticamente acabado o segundo romance. Chegar à última shortlist do Prémio Femina foi motivo de grande orgulho, ainda por cima porque estava também o Gonçalo M. Tavares. Ter pela primeira vez dois portugueses no final de um prémio desta dimensão é reconfortante e faz pensar que a literatura portuguesa está a passar por uma boa fase, pelo menos. Parece ter vitalidade e saúde. E com características diferentes, pois, por exemplo, eu e o Gonçalo somos radicalmente distintos na forma como abordamos as coisas. O segundo romance, O da Joana, conta uma gravidez que chega mal ao fim. Nada autobiográfico? Ouvi uma história de um amigo de um amigo, histórias que se contam no café, e fiquei tão impressionado que procurei na literatura se havia já um relato, um romance, um conto que me fizesse pensar “não vale a pena porque alguém já fez isto”. Como não encontrei, pensei “por que não?” É um livro arriscado, sobretudo porque não sou uma mulher e é uma viagem íntima de uma mulher durante poucas horas. Mas se não é arriscado, para quê? Porquê as situações-limite? No limite reconhecemos, por contraste, uma fronteira que sempre se apresentou difusa na normalidade. Se nos perguntarmos se somos finitos, a primeira resposta que vamos dar é “sim”, mas se perguntarmos “em que sentido?”, teremos mais dificuldades em delimitar esta confusão e esclarecer: “O seu ponto de vista é finito, mas como?” Porque eu não consigo ver através das paredes, porque tenho um ângulo de visão… Elencando tudo isto, vamos ter uma noção mais perfeita do que somos, porque definindo as nossas fronteiras definimos também uma identidade. Gosto dos temas-limite porque são mais interessantes. Fazer um romance a partir do nada ou de uma história banal pode ser um exercício mais desafiador mas numa história deste tipo também é difícil conseguir que não se torne excessivo. O Autismo pode funcionar como uma catarse em relação à sua vida? Não. Isso tem mais a ver com terapia ou psicoterapia ou o que quer que seja, ou procurar ajuda de uma forma mais especializada, do que com escrever. Talvez se tivesse um cunho de diário pudesse ter tido esse efeito terapêutico. Mas pensei sempre em romance, e, embora parte do material fosse meu, esse filtro evita o efeito de me deprimir e o efeito catártico. Numa crónica no Hoje Macau diz: “O meu filho tem 13 anos e com apenas dois anos e meio foi diagnosticado com uma perturbação do espectro do autismo.” Dirige-se a quem tem dificuldade em compreender? Ou temos contacto com autistas ou estamos condicionados pelo que vimos na cultura popular sobre a figura do autista. Normalmente aparece ligada, nos filmes, a figuras mais ou menos geniais mas com uma vida muito disfuncional porque são socialmente limitados, seguem rotinas muito estritas, têm problemas em ter empatia pelos outros e em receber empatia. Mas há um espectro enorme de sintomas e problemas que o autismo abarca. Na revisão 4 do DSM, o manual de perturbações e de condições psiquiátricas, o autismo tinha cinco manifestações distintas, cinco subclasses separadas, entre as quais o autismo e o Asperger, que é a forma altamente funcional do autismo, com desenvolvimento de linguagem e uma vida a priori menos condicionada. Na versão 5, tiraram as fronteiras e passou a chamar-se “perturbações do espectro do autismo”, o que me parece mais lógico porque abarca manifestações que podem ter pontos em comum ou distâncias quilométricas. Eu estava preocupado precisamente… … com o estereótipo Dustin Hoffman? O meu contacto com o autismo foi o Rain Man. Eu achava que os autistas, não sendo todos geniais, eram aquela figura. Descobri que existem tantos autismos como autistas. Todos são muito diferentes, é uma síndrome que não está compreendida. O diagnóstico é comportamental, não há nenhuma análise de laboratório. E difícil de diagnosticar, com tanta variedade de manifestações? Sim, a não ser que seja absolutamente evidente. Além de o diagnóstico ser difícil, o prognóstico é complicado e é sempre condicionado. Os bons médicos que encontrei são reservados relativamente ao futuro da criança que está à frente deles, daqui a dez ou 15 anos. Pode progredir espetacularmente, sair do espectro, como pode ficar igual ou mesmo regredir. A completa imprevisibilidade? E conseguir aceitar que a imprevisibilidade faz parte da vida… Nós gostamos de rotinas, de coisas certas. É uma espécie de domar a natural rebeldia do mundo que nos rodeia. Foi a primeira coisa que fizemos, tentar evitar as catástrofes naturais, as doenças, tentar domar esta coisa e torná-la habitável. O autismo e o prognóstico do autismo, sendo tão reservado, é a forma de o mundo nos dizer que não temos nada sob controlo, ou muito pouca coisa. No autismo tem-se dois filhos, há dois momentos: quando ele nasce e quando é diagnosticado. Encontrou médicos bons e também médicos que não compreenderam? Encontrei médicos bons, médicos maus, médicos estúpidos, charlatães, encontrei de tudo um pouco. Como é comportamental e não pode ser testado e verificado em laboratório, é uma zona cinzenta onde muitas coisas se cruzam, da nutrição aos hábitos desportivos. Toda a gente tem uma palavra a dizer e concorre para a salvação. Alguns bem-intencionados mas com poucos conhecimentos e uma grande dose de fezada, e outros com muitos conhecimentos mas pouca empatia. É preciso estar preparado para tudo? Ninguém está.Vai-se preparando. Ao fim de dez anos do diagnóstico, a imprevisibilidade mantém-se? Não tanto. A partir daqui há mais um grande momento de definição, a adolescência. Na idade adulta, as coisas estão definidas. A infância é a parte mais difícil e a que dá mais esperança, porque tudo pode mudar. A partir da idade adulta, as coisas cristalizam, porque o que adquiriu já não irá perder, e aquilo que não adquiriu não irá adquirir. Há sempre a esperança de que surja qualquer coisa de tão milagroso como a vacina da tuberculose foi. Mesmo que não seja para o meu filho, que seja para todos aqueles que hão de vir. Tornar-me-ia muito mais feliz saber que as pessoas não têm de passar por isto. Depois de terminar as Paternidades Falhadas, entra num novo ciclo? Quero deixar de escrever durante um tempo e fazer outras coisas, nomeadamente ler e estudar. Há muito tempo que não consigo ler. Quando estou a escrever um romance não consigo ler prosa, só poesia. A vida de escritor tem o lado social. O que lhe parece? A única coisa que posso dizer de mau sobre esta coisa da escrita são as muitas querelas e invejas, sobretudo clubes de interesses distintos sobre quem é o dono da verdade sobre a prosa ou a poesia, quem capta os melhores talentos. Tem um aspeto de clube de futebol – adeptos, dirigentes, preceitos e símbolo.
“Termos tido em 2016 dois finalistas no Prémio Femina mostra que a literatura portuguesa parece estar a passar uma boa fase. Parece ter vitalidade e saúde” “Gosto dos temas-limite. Definindo as nossas fronteiras definimos também a nossa identidade. O difícil é não deixar que se torne excessivo” “Encontrei médicos bons, maus, estúpidos, charlatães. Com boas intenções mas poucos conhecimentos, com bons conhecimentos mas pouca empatia”