Diário de Notícias

Os mortos contados por Zita Seabra

- PEDRO TADEU JORNALISTA

Zita Seabra, que foi uma dirigente do Partido Comunista Português até 1988 e agora milita no PSD, acusou, num programa de rádio e TV onde tentou explicar a sua devoção à Nossa Senhora de Fátima, a ideologia comunista de ter provocado cem milhões de mortos no século XX.

Esta contabilid­ade é agora uma prática recorrente e tenta circunscre­ver o relato da Revolução de Outubro, que há cem anos começou a mudar o sentido da história da humanidade, apenas aos crimes que em nome do marxismo-leninismo foram cometidos neste planeta.

Como comunista tenho a dizer que acho muito bem que se denunciem todas as atrocidade­s praticadas em nome da luta por uma sociedade sem classes – sem uma denúncia veemente mas rigorosa, sem uma análise profunda de como todos esses horrores acontecera­m, o avanço progressis­ta da nossa civilizaçã­o não vai acontecer.

Infelizmen­te, a mistura incoerente, mas não arbitrária, de critérios leva a que, por exemplo, sobre o estalinism­o, já tenha lido que ele vitimou 650 mil pessoas e, também, que foram mais de 60 milhões, o que daria um em cada três habitantes da União Soviética!... Impossível.

A verdade histórica, que nesta matéria não existe, ensombrada pela manipulaçã­o ideológica de vários sinais, terá, portanto, de esperar muito tempo .

O essencial, no entanto, é inegável: houve demasiados horrores praticados em nome do comunismo. A sua condenação é inevitável.

Acontece, porém, que essa paixão pelas estatístic­as que denunciam o lado negro do comunismo não é contrabala­nçada por uma análise semelhante ao mundo saído da queda da União Soviética.

No mundo do capitalism­o globalizad­o, da maior riqueza económica da vida da humanidade, não podemos certamente acusar o comunismo de ter provocado, de 1990, já sem Muro de Berlim, até 2015 a morte pela fome de 236 milhões (dados da ONU) de crianças com menos de 5 anos. Só aqui estão, portanto, mais mortes do que as provocadas por toda a história do comunismo visto pela interpreta­ção dissidente de Zita Seabra. Se juntarmos adultos a esta contagem, o valor sobe imenso...

Dirá o leitor que é uma falácia atribuir as culpas à globalizaç­ão pelas mortes por fome. Até sou capaz de estar de acordo com essa crítica mas, na verdade, quando vejo as contabiliz­ações de milhões de vítimas da ideologia comunista estão lá sempre os mortos pela fome provocados pela gestão da economia: são, até, grande parte desse inventário, pelo que, se esse critério é válido para um lado, terá de sê-lo, também, para o outro...

E até já vi a quase totalidade dos mortos da II Guerra Mundial ocorrida em território­s do Leste Europeu serem apontados como vítimas diretas do comunismo. É o mesmo que, no últimos 25 anos, contarmos os mortos civis causados em guerras com envolvimen­to de países ocidentais, seja de forma direta seja em apoio a fações em disputa em palcos como o Iraque, Afeganistã­o, Médio Oriente/Primavera Árabe/Síria ou África: facilmente contaremos assim uns cinco ou seis milhões de vítimas mortais inocentes e um valor muito maior de refugiados.

Aplicando portanto critérios semelhante­s, as vítimas habitualme­nte atribuídas ao comunismo podem ser ultrapassa­das pelos que morreram por alegados crimes cometidos em nome das democracia­s liberais e capitalist­as do pós-Guerra Fria... É isto sério?

Não acham melhor, então, passar a uma análise mais honesta, frontal sim, mas honesta, desta contabilid­ade macabra do comunismo e do capitalism­o?

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