Campo desnivelado
Afirmam os observadores internacionais que o campo estava desnivelado, metáfora que Recep Tayyip Erdogan perceberá sem dificuldade ou não tivesse o presidente turco sido futebolista antes de iniciar a carreira política. A grande questão é se havia alguma hipótese de não estar desnivelado o campo político turco depois de 15 anos de poder do AKP, ainda por cima com o país em estado de emergência menos de um ano depois de um golpe militar falhado e a combater a ameaça terrorista simultânea dos jihadistas e dos separatistas curdos. Outra questão também é saber se o desnível tivesse sido corrigido durante a campanha para o referendo constitucional, de modo a dar hipóteses aos opositores de mais poderes presidenciais, alteraria algo de tão óbvio como a profunda divisão do país.
Foi curta a vitória do sim no domingo, por menos de 3%, mas mesmo assim mais uma para o currículo de Erdogan, iniciado em 1994, quando foi eleito presidente da Câmara de Istambul, para grande irritação do campo laico, sempre desconfiado deste islamo-conservador que insiste em mexer no legado de Mustafa Kemal Ataturk.
Presidente desde 2014, depois de uma década como primeiro-ministro, Erdogan vê agora os seus poderes reforçados. A presidência turca passa a ser executiva e a figura do primeiro-ministro desaparece. O Parlamento perde influência e, dizem os opositores, o sistema judicial fica com a independência ameaçada. Regra pouco falada: se Erdogan (ou um futuro presidente) dissolver o Parlamento, ele também terá de ir a votos.
Uma derrota do presidente no referendo, por pouco que fosse, teria sido simbólica para a oposição laica no braço-de-ferro que trava com Erdogan. Mas alteraria pouco a determinação deste em mudar a Turquia. E a tal divisão quase meio a meio que o próprio mapa eleitoral mostra continuaria a existir.
Não haverá regresso do laicismo como era. E Erdogan também não reislamizará a Turquia como alguns do AKP gostariam. É verdade que o campo está desnivelado mas não serão as críticas externas que abalarão o estatuto de homem-forte de Erdogan. Terá de ser ele, e o povo turco de cada lado da barricada, a procurar o compromisso que permita à nação celebrar o centenário da república em 2023 num cenário mais promissor.