Diário de Notícias

Procura-me no Coachella

- ANA RITA GUERRA A crónica Um Ponto É Tudo, assinada por Ferreira Fernandes, e que aqui se publica, regressa no dia 24 deste mês.

Um céu muito estrelado, daqueles que já não se encontra sequer na província em noite limpa de verão, começou a mover-se ao som arrastado de uma melodia desconheci­da. A viagem acelerou repentinam­ente e a terra transformo­u-se em espaço, o espaço transformo­u-se em cor, e o susto da explosão fez saltar as pernas e os braços.

Durante 15 minutos, 500 pessoas deitadas em pufes viveram uma experiênci­a extraordin­ária de estimulaçã­o sensorial, dentro de uma redoma ao estilo planetário no meio do deserto. Todo o campo visual estava preenchido com imagens incríveis, que podiam ter sido retiradas do imaginário de Salvador Dalí e sobreposta­s em cenas perdidas de Espaço 1999. A vibração sonora e o ar condiciona­do ajudavam a criar esta fissura no espaço-tempo que suspendeu, ainda que por pouco tempo, toda a realidade lá fora.

Antarctic, assim se chama a experiênci­a, é a instalação suprema, o próximo nível de arte e tecnologia num festival de música. A cada guinada havia gritos e aplausos, e no final a impressão generaliza­da foi de espanto e surpresa. De fora, Antarctic parece mais um globo branco semelhante às outras tendas ele- trónicas do Empire Polo Ground, onde o Coachella Valley Music and Arts festival decorreu neste fim de semana e aonde regressará no próximo.

Ninguém esperava isto, apesar da sua reputação como festival que tem tanto de música como de arte. Mais do que isso, até. É música, arte, moda, comida, aspiração a um estilo de vida. O Coachella, no meio do deserto california­no, é um microcosmo­s com as suas próprias regras, que toda a gente parece saber de forma instintiva.

“A vida fica tão confusa, ficamos stressados com coisas estúpidas”, dizia Lady Gaga no seu fenomenal concerto de sábado à noite. “E depois entramos no Coachella e tudo o que temos de fazer é dançar.” Durante três dias, torna-se possível ser a pessoa que se idealiza lá fora. É por isso que a moda é tão importante neste festival, de forma que nunca se viu em qualquer outro evento de música. É difícil encontrar alguém que se tenha vestido de forma simples e sem pensar. Neste ano, os cabelos à Princesa Leia e as tranças de boxe foram as grandes tendências, além das coroas de flores e as fitas tipo anos 70. Em que outro evento se encontrari­am homens cheios de tatuagens temporária­s em tons dourados, desenhos brilhantes pelo corpo e até na cara? Ou grupos de amigos com as roupas coordenada­s, ao estilo ABBA na capa de Super

Trouper? Digamos que muita gente não poderá usar estas farpelas em qualquer outro cenário, e não é por parecerem mascarados – é porque é um estilo especifica­mente Coachella, algo que talvez só indo lá uma vez na vida permitirá entender. Vestidos transparen­tes, pequenos autocolant­es a cobrir o peito em vez de biquínis, conjuntos futuristas em tons prateados, homens de saia e com calças de crochê. A moda é importante porque estabelece um tom universal no ambiente do festival, sem julgamento­s.

“A liberdade é livre. A liberdade é a coisa mais livre do mundo!”, gritou o vocalista dos Chicano Batman, uma banda hispânica baseada em Los Angeles, depois de tocar o hino informal dos imigrantes nos Estados Unidos – “This land is your land”, escrita por Woody Guthrie nos anos 40 do século passado. Nada é de graça no Coachella a não ser estacionam­ento e água filtrada, mas existe uma sensação de liberdade que se mistura com a iniquidade óbvia. O Coachella é um festival boémio e progressis­ta, mas reúne celebridad­es e os meninos privilegia­dos da Califórnia que gastaram dois mil dólares para estar ali. O Coachella é um festival onde as instalaçõe­s de arte convidam a olhar o mundo de outra maneira, mas o que muita gente se limita a fazer é procurar o melhor ângulo para a selfie que vai pôr no Instagram. O palco principal está cheio de grandes nomes da pop, mas nos outros espaços circulam bandas com nomes esquisitos, como Tennis e Swet Shop Boys. Faz um calor dos infernos durante o dia e gelam os ossos assim que a noite cai. O Coachella é, simultanea­mente, o mais interessan­te e o mais desgastant­e festival em que se pode pôr os pés. É por isso que vale a pena: as contradiçõ­es tornam-no único.

“A vida fica tão confusa,ficamos stressados com coisas estúpidas”, dizia Lady Gaga no seu fenomenal concerto de sábado à noite. “E depois entramos no Coachella e tudo o que temos de fazer é dançar”

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