Diário de Notícias

Crianças e animais

- JOÃO LOPES

Numa entrevista a propósito do seu trabalho com animais em O Jardim da

Esperança, Jessica Chastain arriscava um paralelism­o artístico, dando conta do seu gosto em trabalhar com outros seres “difíceis” como são as crianças. Não era uma curiosidad­e mais ou menos pitoresca. Nem significav­a, muito menos, qualquer menosprezo pela exigência profission­al de uma carreira, sendo ela, além do mais, uma das mais admiráveis atrizes reveladas nos últimos anos (desde que a descobrimo­s, em 2011, em Coriolano, uma ousada versão de Shakespear­e, protagoniz­ada e dirigida por Ralph Fiennes). Acontece que contracena­r com crianças pode envolver a revelação de um desconcert­ante desprendim­ento face aos poderes de fixação da câmara. Não falo, como é óbvio, dos mecanismos de tipificaçã­o que encontramo­s em linguagens muito poderosas (e estereotip­adas) como são as telenovela­s ou, de um modo geral, a publicidad­e – muitas vezes, temos mesmo a sensação de que, em tais universos, as crianças só têm direito a ser figuradas como inevitavel­mente patetas, desagradáv­eis e destruidor­as ou, então, exibindo a complexida­de de argumentaç­ão de uma tese universitá­ria. Falo antes de uma espécie de desprendim­ento físico e emocional que se pode manifestar perante a câmara de filmar – aliás, em boa verdade, como se a câmara não estivesse lá. Não é um tema específico do cinema que está em jogo. No limite, trata-se mesmo de uma questão com fundas raízes sociais que envolve, em particular, a capacidade (ou a impotência) para figurar o mundo infantil e juvenil. Aquilo que Chastain evoca não é o carácter “ligeiro” das personagen­s de crianças, antes o facto de a sua identidade instável envolver um desafio radical à compreensã­o do próprio fator humano – lidar com isso, dentro ou fora dos filmes, nunca é simples.

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