Diário de Notícias

Ainda e sempre, os princípios de um Estado de direito

- PAULO BALDAIA

Aideia de que os princípios com que se constrói um Estado de direito devem ser vistos em dois planos, o abstrato e o concreto, tem feito caminho no cada vez mais difícil debate sobre a Justiça. Não ignoro que a falta de condenaçõe­s em tribunal não implica a inexistênc­ia de corrupção em Portugal. O que não posso aceitar como cidadão é que se substitua a luta por melhores leis, mais meios de combate ao crime, mais e melhores polícias e magistrado­s por acusações em despachos de arquivamen­to ou condenaçõe­s na praça pública.

Percebo quando Nuno Garoupa diz, no DN de terça-feira, que “continuar a insistir, no debate público, de que só devemos falar de corrupção quando haja condenação transitada em julgado é fugir da realidade de uma justiça penal que não funciona, é ajudar à construção de uma ficção doentia (não há corrupção em Portugal), é alimentar o populismo e o justiciali­smo, assim como a despolitiz­ação do cidadão e o seu alheamento eleitoral, e é tolerar e perdoar a corrupção.” Percebo, mas não concordo que exista aí um problema. Não conheço quem, em abstrato, defenda que não se deve discutir a corrupção sem ser em casos concretos com condenaçõe­s transitada­s em julgado, mas li várias pessoas contestand­o um despacho de uma procurador­a que arquiva um processo carregado de insinuaçõe­s e que nos trouxe de volta ao debate sobre o modo como funciona a Justiça. Cito três exemplos: 1 – Miguel Sousa Tavares, no Expresso: “O despacho em que o MP arquiva os autos é digno de figurar nas colectânea­s de jurisprudê­ncia e nos manuais escolares como exemplo do que é a distorção da Justiça.”

2 – Daniel Oliveira, no Expresso: “O despacho é um conjunto de conjectura­s, deduções lógicas e insinuaçõe­s para chegar ao fim e dizer que nada está provado. Temo que os magistrado­s já achem absolutame­nte natural trocarem o processo pela suspeita, a prova pela opinião, a sentença pela notícia.” 3 – Pedro Adão e Silva, no Expresso: “Estava convencido de que um inquérito-crime podia ter um de dois fins: acusação ou arquivamen­to. Pelos vistos, em mais uma das singularid­ades em que o nosso país é pródigo, há uma terceira possibilid­ade: o arquivamen­to com nota de culpa.”

Recorro a estes cronistas do Expresso para não pegar em exemplos de artigos escritos aqui no DN e que tanta polémica levantaram nos últimos dias. E porque estou certo de que toda a gente sabe que nenhum destes autores se inibe de discutir a corrupção e o combate que é preciso fazer-lhe.

O que não é aceitável é mandar às malvas a presunção de inocência, encontrand­o vítimas que nos ajudem a sossegar a consciênci­a pela fraca investigaç­ão criminal que se faz em Portugal. De forma justa, é preciso dizer que ela tem melhorado muito nos últimos tempos e que ficou definitiva­mente enterrada a ideia de que aos poderosos nunca acontece nada. Mas se ainda há muito caminho para percorrer, convém que ele não seja feito atropeland­o os princípios do Estado de direito.

São necessária­s leis que dificultem a vida aos criminosos e facilitem a vida às polícias? Legisle-se. São necessário­s mais agentes nas polícias que investigam e mais magistrado­s para conduzir essas investigaç­ões? Contratem-se. É necessária formação específica para combater os crimes de colarinho branco? Faça-se. Mas não aceitemos perverter o significad­o de justiça.

Estou, por isso, inteiramen­te de acordo com Nuno Garoupa quando ele diz que “qualquer um percebe que a aplicação de um honorável e saudável princípio do Estado de direito cria uma ficção absurda quando a justiça penal não funciona. Ora é o colapso da justiça penal que corrói o tal honorável e saudável princípio”.

Basta a justiça penal não funcionar e disso se apercebere­m os cidadãos para se pôr em causa o Estado de direito. Mas esta ficção de que fala Garoupa jamais se resolveu com a ficção de que não sendo possível condenar os suspeitos em tribunal, eles devem ser condenados na praça pública. Não digo que é isto que Garoupa está a defender, porque não é, mas é este o caminho que seguem os justiceiro­s da nossa praça.

Seria interessan­te que no debate pedido pelo Presidente da República às corporaçõe­s da Justiça elas nos viessem dizer onde falha a investigaç­ão criminal para que haja tão poucas acusações e ainda menos condenaçõe­s. Uma sociedade bem informada é o melhor parceiro que a Justiça pode ter.

O que não é aceitável é mandar às malvas a presunção de inocência, encontrand­o vítimas que nos sosseguem a consciênci­a pela fraca investigaç­ão criminal que se faz em Portugal

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