Diário de Notícias

A angústia dos franceses antes de pôr o boletim na urna

- MARIE-LINE DARCY CORRESPOND­ENTE DE MEDIA FRANCESES

Ninguém se importa, ninguém parece preocupar-se. Pelo menos na aparência. Votar domingo 23 de abril, na primeira volta da eleição presidenci­al francesa, é uma verdadeira dor, dor tão aguda como a causada pela fratura de um membro ou de uma ressaca. Exagero? Poucochinh­o. Para alguns de meus compatriot­as é um quebra-cabeças. Em quem votar? Quem escolher domingo, na primeira volta? Quem é mais capaz de “definir um projeto para a França”? As aparências enganam: na realidade, o francês pensa muito. Ele mói o cérebro, levanta-se durante a noite para recalcular, passa o tempo a consultar os seus amigos, os seus parentes: em quem vai votar? Eu, ainda não sei! Na véspera das eleições, essas perguntas ainda estão sem respostas para uma grande parte dos eleitores.

A questão é muito grave e a ansiedade que provoca é proporcion­al. Mais à esquerda, é claro, mas também à direita. Desde logo, temos de excluir o militante, que, por definição, não vai mudar a sua opinião. E nós quase que o invejamos, por ser tão embalado nas suas certezas e convicções. O eleitor mediano, esse, não tem o direito de descansar. Ele arrepende-se das suas hesitações. Ele gostaria de ser atingindo por um raio de clarividên­cia. Mas quatro dias antes da eleição, temos de o constatar: o francês duvida.

Temos de pôr tudo em cima da mesa. Para a esquerda é a Berezina (o nome da batalha entre o exército russo e o exército de Napoleão em 1812, um massacre para os franceses, e, desde então, o sinónimo para catástrofe). Começou com a surpresa criada pela vitória de Benoît Hamon, nas “primárias” de esquerda. Ninguém o esperava, foi o outsider. Mas, pouco depois, foi destronado deste papel por Emmanuel Macron, o menino de ouro da política francesa, aquele que é de esquerda, sem o ser, mas sendo-o, puxado pela força do seu slogan desafiador En marche! De seguida, mais uma surpresa, a de Mélenchon e a sua irresistív­el ascensão nos inquéritos de opinião e no coração dos jovens franceses, no papel de Zola ou de Zorro, como queria. Benoît Hamon, o socialista que “encarna os valores da Esquerda”, encontra-se desde então marginaliz­ado.

À direita, os eleitores têm a escolha entre um candidato pouco fiável, enredado em casos de fraude eventual, que fizeram cair a sua credibilid­ade de candidato “matador de maus costumes políticos”, passando de grande favorito a candidato “possível” a uma segunda volta. E uma candidata de um extremismo perigoso, da Frente Nacional, Marine Le Pen, disfarçada de mulher moderna e eficaz, mas na realidade tão pérfida que a sua cabeleira loura impecável nos tenta convencer do contrário.

Muitos eleitores estão estupefact­os. Oscilam entre cenários. Da razão – o voto útil (consolidar o candidato com a melhor hipótese de se qualificar para a segunda volta) – à paixão, o voto personaliz­ado, no candidato que amamos e que acreditamo­s ser o mais capaz de dirigir a nação no interesse geral e o bem comum.

As sondagens colocaram à frente uma mão de quatro ases (Le Pen, Mélenchon, Macron, Fillon) que agudiza ainda mais a tensão do contexto : os quatro candidatos ficam todos quase ao mesmo nível nas intenções de voto. Em suma: todos e nenhum.

A campanha termina nesta sexta-feira 21 abril. Ufa! Suspira a maioria dos franceses que estão cientes de que os olhos do mundo estão postos no nosso país, e que les affaires que mancharam a campanha (dois dos cinco candidatos mais importante­s, Marine Le Pen e François Fillon, estão na mira da justiça) pesam gravemente sobre o que estamos no direito de esperar da função presidenci­al. Ufa, novamente, porque os franceses estão cansados?? de fazer malabarism­os com a dupla questão do voto útil e da escolha ideológica.

Muitos estão convencido­s de que “nada vai mudar” com o novo presidente e, portanto, não é necessário ir votar. O “cancelamen­to das eleições” não sendo uma opção, os franceses podem optar pela abstenção, em jeito de protesto. Mas lembrem-se de que em 2002 a abstenção recorde de 28,40% dos eleitores provavelme­nte contribuiu para a derrota do socialista Lionel Jospin e a favor do candidato Jean-Marie Le Pen. Na segunda volta, os franceses elegeram então Jacques Chirac com um resultado digno de um escrutínio norte-coreano – 82,21% dos votos – para barrar o caminho ao candidato da extrema-direita.

Porque esta configuraç­ão inédita de quatro “favoritos” na primeira volta (lembrem-se de que dois deles terão de responder diante da justiça), a erosão do Partido Socialista tradiciona­l, a ascensão da Frente Nacional, o fechar-se sobre si próprio, num contexto de quase estado de sítio provocado pelas ameaças de atentados contra os candidatos, em nada ajuda a tranquiliz­ar.

E temos de ter em mente que os franceses têm pela frente um túnel eleitoral: dia 11 de junho, um mês depois da segunda volta das presidenci­ais (7 de maio), vão ter de voltar às urnas para as legislativ­as (duas voltas).

Um novo escrutínio que poderá contradize­r totalmente o resultado das presidenci­ais. Ou não. Tudo é possível. E este campo vasto do possível é um verdadeiro salto para o abismo.

Muitos franceses estão convencido­s de que nada vai mudar com o novo presidente e, portanto, não é necessário ir votar

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