Elogio de uma certa abstenção
Cada vez me custa mais perceber porque é que tanta gente em Portugal se preocupa tanto com os elevados níveis de abstenção dos nossos atos eleitorais (43% nas legislativas de 2015, 51% nas presidenciais de 2016, 47,4% nas autárquicas de 2013, para já não falar dos portentosos 66,2% nas europeias de 2014).
Parece que quem o faz julga que a maior parte dos que faltam às urnas fazem mesmo alguma falta à democracia. Ou, dito de outra forma, que tem necessariamente de haver uma correspondência entre quantidade de votos e qualidade dos votos – e, por consequência, qualidade dos políticos eleitos e das suas políticas
Não percebo francamente esse automatismo – e basta olhar para a primeira volta das eleições francesas, no domingo. A abstenção ficou-se por mínimos históricos, 22%. Por cá, só uma vez é que os valores foram inferiores a esses (15,6% em 1980, na reeleição de Ramalho Eanes). De resto, foram sempre acima, mesmo em fevereiro de 1986, nas presidenciais mais dramáticas de sempre, as que elegeram Mário Soares contra Freitas do Amaral.
Ora, os mesmos sensacionais 78% de participação em França implicaram também que mais ou menos 40% dos votos expressos – 14,6 milhões de franceses, mais coisa menos coisa – se tenham concentrado em dois projetos políticos (o de Marine Le Pen e o de Jean-Luc Mélenchon) que fazem do medo, da irracionalidade e do soberanismo delirante o seu principal argumento para obtenção de cruzinhas no boletim. Assustador é dizer pouco.
Ora, por cá já há muito passou o tempo em que era preciso andar de táxi para conhecermos pessoas suscetíveis de integrarem com grande entusiasmo os enormes exércitos eleitorais como os da Sra. Le Pen ou do Sr. Mélenchon. A emergência das redes sociais na internet e das caixas de comentários nos sites informativos mostrou que o que não falta por aí são eleitores portugueses que, se fossem franceses, teriam votado num daqueles dois candidatos (mais, provavelmente, na Sra. Le Pen). Evidentemente, não sei quantificá-los mas de uma coisa não tenho dúvida: são muitos e andam aí.
Acontece, todavia, que não votam – ou pouco votam, tanto faz. E assim como não me importa muito que adeptos de claques se entretenham uns com os outros a testarem os limites da seleção natural, também não me importa nada que a grunharia eleitoral portuguesa fique em casa. Enquanto a raiva não tiver representação eleitoral fico descansado. Se for por vontade própria, melhor ainda.