E nunca houve uma voz como a d’Ella
Teve uma juventude “estouvada” e uns anos finais trágicos. Cantou melhor os melhores compositores, nunca precisou de gritar para colecionar prémios e medalhas. Ella Fitzgerald faria hoje 100 anos
A indústria da nostalgia está mobilizada há algum tempo: a editora Decca lançou (na sexta-feira passada) um álbum chamado 100 Songs for a Centennial com um ensaio de retrospetiva da carreira d’Ella desde os primórdios; os concertos de homenagem repetem-se um pouco por todo o mundo; os canais de rádio e de TV, aqui com destaque para a generalista BBC e para o temático Mezzo, contemplam programação especial para ajudar a celebrar a especialíssima data do nascimento da mulher que angariou vários cognomes: Lady Ella, Rainha do Jazz ou Primeira-Dama da Canção, este último da insuspeita responsabilidade de um tal Frank Sinatra. A par de Edith Piaf, de Amália, de Elis Regina, de Mercedes Sosa, das suas compatriotas Billie Holiday, Mahalia Jackson e Sarah Vaughan, Ella integra – e talvez com alguma vantagem sobre a “concorrência” – o Olimpo das vozes femininas, facto admitido sem reticências. E, no entanto, tudo isto esteve perto de nunca acontecer, se olharmos aos primeiros anos da vida e da carreira da cantora.
Nasceu a 25 de abril de 1917, em Newport News,Virginia. Negra, pobre e filha de pais que nunca chegaram a casar-se. Quando se mudou com a mãe para a zona de Nova Iorque, esta já tinha uma nova relação, com um português chamado Joseph (talvez José…) da Silva. Ella ainda teve tempo para provar ser uma aluna emérita e para se apaixonar pela dança, ao mesmo tempo que a religião (o agregado frequentava a Igreja Metodista) lhe proporcionava as primeiras experiências de canto. Quando ficou órfã de mãe, em 1932, pensou-se que o padrasto poderia tomar conta dela, que, entretanto, ganhara uma meia-irmã, Frances da Silva. Mas, sem o afirmar perentoriamente, Stuar Nicholson, um dos seus biógrafos, sugere a hipótese de Ella ter sido abusada por Joseph, o que ajudaria a explicar o facto de ter passado a viver no Harlem, entregue a uma tia. À medida que as notas escolares pioravam, a jovem Ella partia em busca de outras emoções: trabalhou como rececionista num bordel e esteve envolvida em tarefas ligadas a apostas ilegais controladas pela máfia. Percebe-se por que, sendo a partir de hoje centenária, se pode falar numa juventude “estouvada”. Remetida para dois reformatórios, fugiu de ambos e, durante algum tempo, viveu na rua, ganhando algum dinheiro a cantar.
Emendas e amadores
Ao contrário de muitas outras estrelas, que exorcizam as vivências, mais distantes ou mais próximas, trazendo-as ao conhecimento público na primeira pessoa, Ella nunca se dispôs, depois de conquistado o seu território privativo, primeiro com a orquestra de Chick Webb, mais tarde com a entrega total às decisões do empresário Norman Granz (o fundador e principal impulsionador da editora discográfica Verve, em que a cantora viveu os seus anos dourados, seguindo-o depois para o catálogo da Pablo), a falar sobre tais assuntos. Quis o destino, a juntar à força de vontade e a alguma sorte, que estas peripécias passassem a fazer parte de uma espécie de pré-história, de alguma forma considerada irrelevante pela protagonista, que nunca se deixou afundar pelas depressões e pelos excessos, ao contrário, por exemplo, do que sucedeu com Billie Holiday.
Para Ella, alguns sobressaltos vividos estiveram quase sempre ligados a assuntos do coração. Aconteceu, nomeadamente, quando a Dama tentou negar um casamento – e de papel passado – com Benjamin “Benny” Kornegay, conhecido e condenado passador de droga do Bronx. O matrimónio ocorreu em 1941 e foi anulado em 1942 – para Ella
“nunca existiu”. Por esta altura, já os méritos d’Ella estavam à vista, depois de ela ter participado e vencido numa noite de amadores no famoso Apollo Theater, a 21 de novembro de 1934. Planeou dançar, mas, felizmente, a timidez “obrigou-a” a cantar. Ganhou um prémio de 25 dólares e outro que dava direito a atuar na sala durante uma semana, mas que os proprietários do Apollo, pouco impressionados com a figura, nunca levaram à prática. Acima de tudo, ganhou a atenção que lhe foi permitindo mais contactos e mais espetáculos, até ser contratada por Webb.
Esteve casada com o contrabaixista Ray Brown, de 1947 a 1953, tempo suficiente para adotarem um menino, cujo nome oficial é Ray Brown Jr. – na verdade, é filho de Frances da Silva, ou seja, sobrinho d’Ella. Em 1957, a agência Reuters anunciou o casamento iminente da cantora com um norueguês, Thor Einar Larssen. Segundo a notícia, a cantora já teria inclusivamente escolhido e comprado a mobília para montar um lar em Oslo. Tudo se esfumou quando Larssen foi condenado a uma sentença de trabalhos forçados por ter roubado dinheiro a uma mulher com que estivera anteriormente envolvido. Outra das “escorregadelas” d’Ella foi, de acordo com Norman Granz, uma “armadilha policial”: juntamente com o trompetista Dizzy Gillespie, Ella foi detida e acusada de participar em “jogo ilegal” num clube de Houston, Texas. Na verdade, os dois músicos tinham defendido que o concerto que estava previsto não devia ser sujeito à segregação racial, algo que as autoridades texanas não perdoaram. Várias foram, de resto, as ocasiões em que a cantora acabou por cantar “à porta fechada” para conseguir tornear a questão. Uma das suas maiores defensoras, capaz de a ajudar a conseguir bons contratos em “zonas exclusivas” dos brancos, foi a atriz Marilyn Monroe.
Trabalhadora incansável, Ella acumulou 14 prémios Grammy (um deles pelo conjunto da carreira), a National Medal of Art, a Presidential Medal of Freedom, um doutoramento honoris causa pela Universidade de Harvard. Teria vivido os últimos anos tranquilamente se a saúde não a impedisse. Primeiro, foi um internamento por dificuldades respiratórias (1985), depois um ataque cardíaco seguido de uma delicada operação (1986), a seguir a exaustão, a seguir a uma curta digressão britânica (1990), que acabaria por representar as últimas subidas ao palco. Pior (em 1993) foi a amputação de ambas as pernas, na sequência de complicações com origem na diabetes que também lhe afetou dramaticamente a visão. Em 1996, confinada a uma cadeira de rodas, expressou a vontade de passar em casa os dias do fim: “Só quero cheirar o ar, escutar os pássaros e ouvir a Alice [a neta, filha de Ray Brown Jr.] rir.” No dia 15 de junho, depois de um último passeio ao ar livre, foi conduzida de volta a casa. Despediu-se: “Agora, estou pronta para partir.” Mas porque será que gostamos de guardar a ideia, de cada vez que a ouvimos, de que nunca nos deixou?