Os 50 melhores: aftertaste
Uma viagem à Austrália para assistir à eleição dos melhores restaurantes do mundo e conversar com os chefs que os fazem
Aborígenes Smoothie detox. Duplo expresso. Saio a correr do hotel para não perder o primeiro dos muitos eventos à volta do 50 Best. Vejo e oiço com gosto as masterclasses de Albert Adrià, Virgilio Martínez e Joan Roca sobre criatividade na alta cozinha, mas quando volto ao hotel as palavras que me ecoam na cabeça são do “desconhecido” Jock Zonfrillo do Orana, em Adelaide – que nem sequer está na lista dos melhores. Orana significa bem-vindo. Jock dedica-se há décadas a estudar a cultura dos aborígenes, a que chama “professores da terra”, e a interpretá-la na sua cozinha contemporânea. Criou uma fundação para ajudá-los a reencontrar o seu ADN e evitar que se perca o conhecimento dos ingredientes e técnicas usadas há milhares de anos para sobreviver nas terras mais remotas da Austrália, onde nada comestível parece existir. “Tens de aprender sobre a vida, os patos, o peru, o emu (semelhante à avestruz), tudo. Sobre cada árvore, cada planta, cada pássaro e criatura...” Este povo que fala com as árvores para que se sintam especiais e lhes deem frutos sabe que há abundância por descobrir sob a aparente austeridade. Desde que se respeite a terra. “Se tomares conta da terra, ela tomará conta de ti”, é o lema.
Os nómadas aborígenes quase não usam recipientes, cozinham diretamente sobre as brasas. A ave que comi, magpie goose (Anseranas semipalmata), foi feita assim, com uma cama de folhas de eucalipto a protegê-la. Ótima. Também provei formigas verdes, que como as primas da Amazónia que Alex Atala me deu em São Paulo são picantes, de sabor cítrico, a lembrar erva-príncipe. Cangurus O Attica do chef Ben Shewry é o australiano mais bem classificado na lista (subiu a 32.º). É lá que todos os chefs e críticos em Melbourne querem ir. Sete cães a um osso. Agravado pelo facto de nessa semana só estar aberto um dia por causa do evento. Com paciência, sorte, contactos e muitos meses de antecedência consegui a mesa impossível.
Mais uma imersão no terroir. São 20 pratos memoráveis que fazem compreender e sentir o sítio. Canguru, acácia e flor-de-cera (Chamelaucium), jumbuck (borrego) e tulipas, abalone e beurre noir, bife no osso, todas as partes da abóbora... À minha frente, numa mesa para um, reconheço o crítico e escritor gastronómico Bruce Palling, correspondente da BBC na Guerra do Vietname e que escreveu no The Independent, Vogue, The Times, The Washington Post e mais recentemente TheWall Street Journal. Volumoso, com óculos de massa grossa, expressão séria e caderno na mão, é tudo o que se imagina da profissão. Lembro-me do que uma vez disse: “O sucesso de um restaurante é fazer que as celebridades se sintam pessoas comuns e as pessoas comuns se sintam celebridades.” Para além da cozinha 18.30 em ponto. O Royal Exhibition Building está à altura da ocasião. Um amigo arquiteto, a viver em Melbourne, conta-me que este edifício classificado pela UNESCO foi construído para acolher a Exposição Mundial de 1880-81 e foi lá que se instalou o primeiro Parlamento da Austrália. Nesta noite iluminou-se de luzes violeta para a maior celebração gastronómica do planeta. Melbourne é longe de quase tudo. Partindo da Europa, da América ou da Ásia, pela frente há longas horas de voo, um fuso horário diferente e jet lag violento. Nada disso impediu que 47 dos 50 melhores chefs do mundo estivessem nos World’s 50 Best Restaurants, influente lista que está a celebrar o 15.º aniversário.
EntreVIP, vinho da Austrália e holofotes, o countdown chega ao fim com o Eleven Madison Park de Nova Iorque a conquistar o pódio, com Massimo Bottura em segundo e Joan Roca em terceiro. Noto alguma deceção de nuestros hermanos mas Espanha continua a ser o único país com três restaurantes no top 10 (El Celler de Can Roca, Asador Etxebarri e Mugaritz).
O novo n.º 1 tem uma história a dois. Will Guidara ocupa-se da sala e Daniel Humm da cozinha. São sócios, amigos inseparáveis e acreditam que o sucesso de um restaurante é a combinação perfeita das duas áreas. “Uma das coisas que me orgulham mais hoje”, disse Humm, “é que não estou aqui sozinho. Estamos todos a representar a cozinha e a sala. Se há coisa que aprendi é que de nada serve colocar algo extraordinário no prato se não for servido com graciosidade e sinceridade. Os restaurantes são sobre relações. E as relações assentam na confiança. E noWill encontrei alguém que adoro, respeito e em que confio totalmente”. Colaboração criativa Felicito Daniel com um abraço. Está ainda incrédulo. Recordo que dias antes tinha chamado a atenção para outra coisa que também pode ajudar a explicar a sua performance: “A cozinha evoluiu de forma dramática porque os chefs mudaram a forma como criam. As pessoas acreditam cada vez mais na colaboração. Eu cresci em cozinhas na Europa onde a motivação era o medo. Podia-se ir subindo na carreira até sous chef ou chef de cuisine e continuar a não ter influência na comida, a opinião não contava. Estavas ali para executar, e isso não permitia evoluir. Nos últimos dez anos a cozinha deu um salto enorme porque os chefs começaram a perceber que tinham com eles 30 ou 40 cozinheiros de diferentes antecedentes, com as suas próprias experiências, técnicas, ideias. O desafio com esta colaboração é assegurar que temos o nosso estilo e identidade. No final, tornamo-nos editores, procurando garantir que tudo o que cozinhamos tem aquele Madison Park feel.” O turista gastronómico Hoje há cada vez mais pessoas a marcar mesa antes da viagem de avião. Não estamos todos em Melbourne por acaso. O Tourism of Australia delineou em 2013 a estratégia para tornar o país um dos grandes destinos gastronómicos do planeta. Começou a patrocinar o 50 Best, convidou jornalistas, chefs, bloggers apoiou o pop up do Noma no ano passado em Sydney, conseguiu que o evento de anúncio da lista fosse aqui e viu um segundo restaurante australiano entrar na lista, o Brae do chef Dan Hunter. Segundo o NYT, “desde que a campanha começou, os gastos em alimentação e vinho por turistas cresceram mil milhões de dólares”. Dá que pensar. Um mundo (quase) plano Quando Thomas Friedman, correspondente de foreign affairs do NYT, escreveu
O Mundo É Plano chamou-nos a atenção para o contexto competitivo global em que todos jogamos no mesmo tabuleiro nivelado de oportunidades. Onde, graças à internet, desmaterialização, social media, quebra de barreiras físicas, os concorrentes podem surgir de qualquer lado. Também na gastronomia, a última década tem sido marcada pela entrada em cena de cada vez mais atores de fora das geografias do costume. Há milhares
O n.º 1 do mundo tem uma história a dois. Will Guidara ocupa-se da sala e Daniel Humm da cozinha. O sucesso é a junção das duas áreas
de restaurantes surpreendentes e uma nova cartografia da alta cozinha é desenhada a cada momento.
Será cada vez mais difícil entrar na lista. O funil continua a estreitar nos 50 melhores, mas está cada vez mais cheio (não menosprezar, portanto, o 85.º lugar do Belcanto de José Avillez). Foi a Escandinávia de Redzepi e todos os que se seguiram, depois a América Latina de Alex Atala, Gaston Acúrio, Virgilio Martínez, Enrique Olvera ou Rodolfo Guzmán, e, cada vez mais, a Ásia. “Hoje questionaram-me sobre a existência de tantos asiáticos”, diz-me Gaggan, chef indiano cujo restaurante em Banguecoque foi eleito o melhor da Ásia e n.º 7 na lista mundial. “Eu respondi: porque não? Nós inventámos o ato de comer com os pauzinhos e com as mãos – coisas essenciais. É uma questão de tempo e verão mais asiáticos no 50 Best, da Coreia, que é talvez a cozinha mais subavaliada de sempre, Malásia, Filipinas, Indonésia,Vietname.”
Ajudaria, diria eu, se a próxima cidade escolhida para o evento fosse na Ásia. A verdade é que a mecânica subjacente aos prémios pode enviesar o resultado. Tal como as tentativas de passar o globo para um mapa plano foram historicamente distorcidas consoante o ponto de vista de quem as desenhava. No ano passado, pela primeira vez o evento saiu de Londres para Nova Iorque. Era de esperar que muitos dos restaurantes da cidade, e em particular o Eleven Madison Park, viessem a subir na lista pelo simples facto Três exemplos de pratos: em cima, abalone, ao centro borrego e tulipas, e em baixo bife no osso de grande parte do júri conseguir lá ir. Para o ano serão os australianos. Desperdício “Eu queria que oWASTED servisse para expandir a definição de desperdício”, conta-me Dan Barber, chef do Blue Hill at Stone Barns, em Nova Iorque, que neste ano ganhou o prémio de Highest Climber ao subir de 48.º para 11.º. Dan é o autor de O Terceiro Prato, que debate a importância da ética alimentar e a necessidade de as pessoas saberem mais sobre os alimentos que comem, e WASTED é uma iniciativa que recentemente repetiu com mais 20 chefs em Londres para mostrar às pessoas como utilizar criativamente partes de animais, vegetais ou fruta que normalmente vão para o lixo. “O que é desperdício? Esta ideia de que falamos muitas vezes de comida que vai para o lixo, fruta feia, alimentos fora de prazo, que ficam no prato e se deitam fora, etc. Tem de se continuar a falar mas eu acho que em termos de desperdício de comida a cultura alimentar cria muitíssimo mais problemas. No Reino Unido, por exemplo, há dois milhões de hectares de plantação de trigo, 65% para alimentar animais! Temos de fazer muito melhor. Não desperdiçar, conseguir a colaboração de supermercados para reduzir o desperdício, isso é tudo bom. Mas é uma gota no oceano! Temos de repensar a cultura alimentar e o sistema como um todo.” E o papel do chef? “Nós temos a oportunidade de chamar a atenção para isso e começar a recriar essa cultura alimentar. É isso que os bons restaurantes fazem, porque depois isso alarga e influencia a cultura do dia-a-dia de massas.”
“Estamos no fundo a falar do futuro da restauração porque se daqui a uns anos olharmos para o que se passou nos últimos cinco/dez anos, vamos certamente dizer que foi uma época de mudança surpreendente no fine dining. Hoje já não vamos a um restaurante à espera lagosta, caviar e foie gras, ou de ter sempre um prato de carne no final... e isso passou-se num instante. É uma forma muito mais interessante de comer e sobretudo é muito mais reveladora do lugar onde estamos. Quando te sentas à mesa estás ligado ao mundo à tua volta de uma forma muito única”, continua.
“Se estamos à procura dos melhores ingredientes, os mais deliciosos, o que é que isso implica a montante? Imagina uma cenoura, uma cenoura verdadeiramente deliciosa, daquelas que comes e ficas de boca aberta. Tem de estar ligada a boas sementes. Uma semente daquelas que estão por trás dos sistemas convencionais não te dá esse sabor. E teria de ter crescido em solo muito bom ou nunca terias essa permanência de sabor depois de a engolir. Provavelmente esteve nas mãos de um bom agricultor que se preocupa com isso. Quase de certeza foi cultivada localmente porque as cenouras que viajam milhares de quilómetros não podem ter esse sabor. E, se foi cultivada na zona, provavelmente tem subjacente algum tipo de sistema social mais justo do que aquele que está associado às que se produzem em grande escala a milhares de quilómetros. E tens nutrição, porque se essa cenoura era tão boa é porque era nutritiva – os flavonoides são sabor. A cenoura está cheia de flavonoides, micronutrientes e vitaminas. E de repente o chef é nutricionista, político, ativista... nós estamos na intersecção de todos estes movimentos e se todos os chefs procuram bons ingredientes isso é uma responsabilidade mas também uma possibilidade inspiradora para o futuro da boa cozinha.” Uma pausa e acrescenta: “E há uma confiança nos chefs que não encontras num político...” [risos]
Quem sou eu para discordar? Vou procurar uma cenoura deliciosa. João Wengorovius investiga e escreve sobre os temas da inovação e da criatividade através da alta cozinha e é CEO da consultora estratégicaW&B