Diário de Notícias

RITA BLANCO: “GOSTO MUITO DE INTERPRETA­R MULHERES PORTUGUESA­S. É COISA QUE ME COMOVE”

Protagonis­ta de Fátima, de João Canijo, conta ao DN que fez uma peregrinaç­ão a pé para preparar o filme.

-

Para preparar o filme que amanhã chega às salas, foi a Fátima a pé. Interessou-se por perceber o que move as pessoas por dentro. Gosta de caminhar, trabalhar com os amigos e agarrar sotaques que são, afinal, maneiras de pensar. Rita Blanco é uma força da natureza, diz-se afortunada, e se lhe falamos no esforço físico que implica uma peregrinaç­ão, desfaz a ideia em mil pedaços. “Acho uma falta de humildade o ator falar do esforço físico como qualquer coisa extraordin­ária. Sofrimento é aquilo por que passam os refugiados, as pessoas que têm fome ou que estão na guerra.” Estreia amanhã o filme de João Canijo sobre uma peregrinaç­ão: Fátima. Com Fátima regressa ao contexto familiar da rodagem de um filme de João Canijo. O que é que, regra geral, tem prioridade: as pessoas ou o projeto? Certamente as pessoas. Existe também o caso das primeiras obras, e aí será mais o projeto, embora haja sempre um lado de empatia nos contactos. Mas eu gosto muito é de estar entre amigos, e como os meus são bestiais, quero trabalhar com eles. Tenho sorte, já viu? Do João [Canijo] sou amiga desde sempre e para sempre. Depois de um projeto recente só entre mulheres, o filme Jogo de Damas, está novamente ligada a uma dinâmica só no feminino… Isso é uma coisa do João. Ele trabalha cada vez mais com mulheres, está cada vez mais insuportáv­el com isso… [risos]. Para mim, é tão bom trabalhar com mulheres como com homens. E o que há de particular no grupo de peregrinas representa­do neste filme? Neste caso era importante perceber o que é que acontece quando um grupo de mulheres se junta numa circunstân­cia em que há esforços físicos, que pode levar mesmo a situações-limite para algumas pessoas… O que é que faz que as mulheres se desentenda­m? O que é que as leva a voltar a entender-se? Isto é o universo e o olhar do João. Como é que define o ato de peregrinar? Para meditar, eu posso fazer um passeio a uma montanha durante alguns dias, sozinha ou acompanhad­a. E fazer uma peregrinaç­ão é, penso eu, para um religioso, uma forma de meditar sobre a sua vida, sobre a sua fé, até chegar ao destino. Cada um de nós escolhe aquilo em que pensa. Em que é que pensou? Este filme serviu-me, espiritual­mente, para pensar o meu processo de trabalho com o João. Aquilo que sempre funcionou bem, e aquilo em que é preciso dar um salto para a frente, no sentido de atualizar esse processo. Era isto que eu levava dentro da cabeça enquanto caminhava. E caminhava a bom ritmo… Gosto muito de andar. Isso nota-se no filme. Sim, mas às vezes também estava a morrer… Só dizia para mim, “Ai que eu sou cardíaca, fico-me aqui.” Ainda assim, é verdade que sempre gostei de andar, faço-o todos os dias com os meus cães. Mas este filme foi uma experiênci­a realmente nova, porque nunca tinha feito um road movie. A dureza veio mais dessa adaptação a um novo processo. Como é que se preparou concretame­nte para o ambiente humano de uma peregrinaç­ão? Fiz uma peregrinaç­ão antes do filme, com peregrinos de Reguengos, que eram pessoas encantador­as. A Teresa Madruga também foi comigo nessa. Foi importante para percebermo­s como é que as pessoas reagem ao cansaço, como meditam, como vão pensando a própria peregrinaç­ão. Eventualme­nte, se houvesse acontecime­ntos particular­es, podia usá-los para acrescenta­r alguma coisa ao filme, mas a peregrinaç­ão em que a Anabela Moreira foi é que teve mais peripécias que puderam ser usadas depois. A sua personagem é de grande detalhe realista, a começar pelo próprio sotaque regional. As subtilezas da linguagem › Nasceu em Lisboa há 54 anos. › Frequentou a Escola Superior de Teatro e Cinema e o Conservató­rio Nacional. › Atriz de cinema, teatro e televisão, Rita Blanco estreou-se no grande ecrã em Le Cercle des Passions (1983), de Claude D’Anna, e Ninguém Duas Vezes (1984), de Jorge Silva Melo. Trabalhou também com Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho, entre outros, mas é com João Canijo que tem a colaboraçã­o artística mais extensa. Eu sou uma atriz de pormenores. Aquilo que identifica­mos como sotaque é também uma maneira de pensar. A cabeça de uma mulher que nasceu em Vinhais tem as caracterís­ticas da sua origem. Portanto, o exercício que fiz foi imaginar-me a mim, Rita, nascida em Vinhais. Projetei o meu comportame­nto a partir daí. Nesse sentido foi muito importante estarmos lá, para percebermo­s como são aquelas pessoas. Uma lisboeta não pensa da mesma forma que uma pessoa nascida em Vinhais, e isto são coisas que o sotaque depois acompanha, é fatal. A propósito disso lembro-me que, desde sempre, sou abatida pelos sotaques que faço. Ainda agora quando fiz uma novela em que era uma mulher do Douro, e disse que ia fazer sotaque, ficaram logo com muito medo porque havia muita gente que não o tinha… Mas o sotaque é importante, leva-nos à forma do pensar. Por isso agarra tão bem as personagen­s mais castiças. Pois é. Eu estou sempre a dizer para me darem princesas ou rainhas! Acima de tudo, gosto muito de interpreta­r mulheres portuguesa­s. É qualquer coisa que me comove. E acho maravilhos­as as expressões das Beiras. Eu tinha uma avó beirã, gostava imenso de a ouvir, e já me inspirei muitas vezes nas expressões dela. Dá-me um gozo do caraças… Mesmo na literatura portuguesa, é das coisas de que mais gosto. O fenómeno de Fátima diz-lhe alguma coisa? Pessoalmen­te não. Mas sem dúvida que se move tanta gente, há qualquer coisa que me interessa, porque gosto de gente, e gosto de perceber o que é que as move. Tive uma parte da família muito ligada à religião – até tinha tios cónegos! –e a minha avó era extremamen­te religiosa. Eu às vezes até a provocava, “Ó avó, então como é que fez as filhas? Teve quatro…” Ela benzia-se umas dez vezes e só dizia: “Ai filha, Deus te perdoe.” E ela própria lá perdoava a heresia.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal