Roteiro de uma investigação à pequena corrupção à mesa do almoço
Durante meses, inspetores da Judiciária seguiram e escutaram funcionários do fisco em encontros com empresários
CARLOS RODRIGUES LIMA Sentado numa mesa do restaurante A Tiraninha, A.G. tinha à sua frente H.M., um jogador de futebol, e um Dr. Paulo. A conversa decorreu de forma amena, até que H.M. levantou-se e entregou um “maço de notas dobradas ao meio” a A.G., funcionário do Serviço de Finanças Lisboa 10. Tudo estaria bem se numa outra mesa não estivessem dois inspetores da Unidade Nacional Contra a Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária que registaram o momento, imortalizando-o nos autos do processo sobre corrupção nas Finanças, que na semana passada levou a acusação contra 45 pessoas.
Tal como alguns bons negócios são feitos à mesa, também a pequena-média corrupção passa por uma boa refeição. Esta bem que poderia ser a conclusão da investigação da UNCC, que durante meses seguiu e fotografou vários funcionários do fisco em almoços e jantares com os seus “clientes”, levando os inspetores num autêntico rally-restaurantes em Lisboa, onde tudo era combinado, decidido e, no final, alguém pagava as contas. No caso do funcionário A.G, o Ministério Público acusou-o de 16 crimes, desde corrupção passiva a acesso ilegítimo e falsidade informática.
A ligação entre a (alegada) corrupção e uma boa refeição é o ponto forte deste processo. Vejamos outro exemplo: C.F., chefe de Finanças de Alvalade, acusado de quatro crimes (corrupção passiva e tráfico de influências), a 7 de abril de 2015 combinou com o colega R.R., das Finanças da Amadora, um jantar para essa noite na Marisqueira do Bairro, em Olival de Basto, com “pessoas à moda antiga”, que “não dão trabalho”. Segundo a investigação da Polícia Judiciária, trata-se de um empresário que pretendia resolver algumas questões pendentes com as Finanças. No dia seguinte, os intervenientes comentaram a qualidade do repasto oferecido: “Os gajos portaram-se bem”, disse C.F., elencando, em seguida, a qualidade do vinho: Cartuxa, Vários funcionários da Autoridade Tributária teriam uma espécie de “contribuintes” VIP que acompanhavam a troco de contrapartidas Esporão, Douro e, obviamente, para finalizar, o whisky de 12 anos.
C.F., casado, um filho, é um dos principais arguidos no processo. Na análise feita às suas contas pela UNCC, os investigadores detetaram, além dos movimentos a crédito dos ordenados do casal, a entrada de 17 mil euros em depósitos em numerário, oito mil euros noutros depósitos e cinco mil euros em cheques.
O eventual esquema de corrupção investigado parecia disseminado por vários serviços das Finanças. A própria Judiciária, num relatório entregue ao processo, consultado na passada semana pelo DN, refere que os vários funcionários suspeitos tinham uma espécie de clientes privados e que “ao invés de estarem disponíveis para os normais contribuintes passam parte substancial do seu dia de trabalho disponíveis apenas para os contribuintes eleitos ‘pagadores’, ao alcance dos quais fica a possibilidade de uma resolução célere e eficaz e até abreviada e favorável das sua contendas fiscais”.
Um deste casos é R.C., chefe de Finanças, entretanto reformado. Fotografado em vários encontros com empresários em restaurantes (Dom Feijão ou Senhor Peixe, por exemplo), foi também escutado a passar informação fiscal a alguns deles sobre empresas e pessoas com quem aqueles tinham ou poderiam fazer negócios. Nas contas de R.C. entraram, além do respetivo ordenado, 17 mil euros em depósitos vários. O Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa imputou-lhe 11 crimes de corrupção passiva, abuso de poder e acesso ilegítimo.
Os passos dos 13 funcionários agora acusados foram mapeados pela Judiciária, não só socorrendo-se de escutas como também de vigilâncias e até de imagens das câmaras de segurança de centros comerciais, como o Oeiras Parque e o CascaiShopping, dois locais onde alguns suspeitos, após conversas telefónicas, mantinham encontros com pessoas que recorriam aos seus serviços mais “personalizados”. Toda a investigação começou com uma denúncia de uma antiga colega de escritório de um advogado, “carinhosamente” apelidado por alguns funcionários do fisco como Johnny Rabitt, dando conta de algumas práticas suspeitas. Após alguns meses de investigação, a Polícia Judiciária percebeu que essas práticas eram comuns a vários serviços de Finanças na área de Lisboa.