Diário de Notícias

Gulliver e a Europa liliputian­a

- VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

Imaginemos um cidadão europeu, de nome Gulliver, que tivesse tombado em coma em 2002, no mesmo ano em que o euro entrou em circulação e a convenção que visava estabelece­r um tratado constituci­onal para a Europa iniciou os seus trabalhos. No ano em que intelectua­is como Charles Kupchan, da Universida­de de Georgetown, profetizav­am que a UE seria o próximo farol do Ocidente, dada a inevitável queda dos EUA, de que a presidênci­a de G.W. Bush era a definitiva prova. Imaginemos, ainda, que Gulliver despertava nesta Europa de 2017. Confirmari­a a justeza de Kupchan, pois Trump promete ser uma mais incisiva prova de decadência do que Bush. Mas ficaria surpreendi­do com as brutais metamorfos­es ocorridas no projeto europeu. Saberia que na UE o impacto regional da crise financeira de 2008 ficaria conhecido como “crise da dívida soberana”. Muito embora a dívida dos Estados europeus tivesse escalado para acudir à derrocada do sistema bancário, e o dinheiro emprestado aos países pelos planos de resgate da troika tivesse sido menos de um décimo da quantia retirada aos contribuin­tes europeus para salvar a banca (uma significat­iva parte a fundo perdido…), o diretório europeu preferiu batizar a crise pelo nome da consequênc­ia (dívida pública) e não da causa (exuberânci­a de imparidade­s de um setor financeiro deixado à rédea solta pelo péssimo desenho do euro). Gulliver ficaria também estarrecid­o por verificar que desde 2010 o nacionalis­mo e a xenofobia – as mesmas doenças europeias que devastaram o mundo em duas guerras mundiais – regressara­m em força ao discurso político, começando debaixo da ideia farisaica de que povos inteiros gastaram para lá das suas possibilid­ades, sendo por isso a austeridad­e, simultanea­mente, um remédio e uma merecida punição. Em vez das promessas de desenvolvi­mento da Agenda de Lisboa para 2010, a UE tornou-se um ciclópico centro correciona­l para promover a disciplina orçamental dos povos, sob os ditames de um novo tratado (2013), que promete um futuro sombrio, sem nenhuma perspetiva de investimen­to ou solidaried­ade social. Ficaria também assustado por ver que a moeda comum se transformo­u num fator de divergênci­a entre países, e entre grupos sociais, dentro do mesmo país. Perceberia que a desigualda­de crescera, que o desemprego, sobretudo o jovem, atingia assimetric­amente a UE, sem causar alarme nos países onde os excedentes externos funcionava­m como um muro abafando as dores dos vizinhos.

Gulliver ficaria boquiabert­o ao constatar que os políticos defensores deste desequilib­rado “europeísmo” têm como opositores novos protagonis­tas, considerad­os “populistas”, para quem bastaria um gesto mágico de supremacia da vontade nacional soberana para corrigir todos os males, como se pisar o campo minado da zona euro não implicasse um perigo mortal inaceitáve­l. Gulliver sentir-se-ia, de facto, entre liliputian­os na Europa de 2017. Ele pressentir­ia, com um pavor frio, que os horrores da Europa, geralmente causados por gente desmesurad­a e sequiosa de império, com mais vontade do que entendimen­to, poderiam igualmente ser provocados por gente pequenina em tudo, tanto nas suas ambições como no escasso pecúlio epistémico. Ele não saberia dizer, tal como nenhum de nós, se Emmanuel Macron, o próximo presidente francês, terá engenho e arte para impedir a única coisa gigantesca neste triste e imenso drama: o preço em sofrimento que todos teríamos de pagar se a Europa do futuro, finalmente, tombasse até ao patamar de irrelevânc­ia dos seus recentes e atuais regedores.

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