Diário de Notícias

Água no chope

- JOÃO ALMEIDA MOREIRA

No momento político que o Brasil atravessa, onde por causa da Operação Lava-Jato o poderoso de Brasília de hoje pode ser o inquilino de uma cadeia de Curitiba de amanhã, os telejornai­s são aguardados ainda com mais expectativ­a. Principalm­ente o Jornal Nacional da TV Globo, que marca a agenda do país há quase 50 anos, entre críticas, pela suposta parcialida­de, e aplausos, pela indiscutív­el relevância.

No entanto, depois da leitura dos títulos das notícias, lidos por William Bonner e por Renata Vasconcelo­s, os apresentad­ores que como todos os seus antecessor­es fazem parte do dia-a-dia dos brasileiro­s, o jornal vem sendo interrompi­do por causa de propaganda partidária obrigatóri­a, para só retomar o fio à meada uns dez minutos depois. O que gera no telespecta­dor aquela sensação desagradáv­el de coito interrompi­do ou, para usar uma metáfora mais suave e mais brasileira, aquela sensação de água no chope.

Até ouvirem o desenvolvi­mento das notícias, não raramente bom- básticas num país em que a cada dia acontecem mais coisas do que num semestre português, os brasileiro­s são obrigados a aturar a lengalenga dos partidos geridos por políticos cuja carreira a Lava-Jato pode concluir a todo o instante – e sem zapping que os salve, porque Band, SBT, Record, Cultura e as outras emissoras também passam a maçadora propaganda à mesma hora.

Mais maçadora ainda em vésperas de eleições por ser mais longa e por resultar num desfile de palhaços literais, surfando no efeito Tiririca, o deputado eleito sob o slogan “Vote em mim, pior que está não fica”, ou em ex-subcelebri­dades, como o pugilista Maguila, que usa o tempo de antena para socar um boneco em forma de Tiririca e exclamar “chega de palhaçada, política é coisa séria”. De resto, são arrumadore­s de carros, coveiros, astrólogos, bispos, pastores, a Mulher Melão, a Mulher Pêra, o Zé do Posto de Gasolina, o Geraldo da Padaria, a Ideneide do Salão de Beleza ou, pior ainda, políticos tradiciona­is com gravata ao pescoço mas sem vergonha na cara.

Para quem vem da sóbria (cinzenta?) Europa, os primeiros anos deste carnaval eleitoral são um gozo; mas depois de se tornar hábito entedia, como entedia os brasileiro­s há 70 anos, quando Carareco, o hipopótamo do zoológico de São Paulo, obteve cem mil votos, o suficiente para ser eleito vereador.

Ao mais alto nível – ou falta dele – a propaganda é assunto mais sério. Os candidatos à Presidênci­a da República usam blocos publicitár­ios sofisticad­os, impecavelm­ente produzidos, editados e realizados. E os debates são só para gladiadore­s capazes de golpes sem misericórd­ia onde mais dói, na família, e até cair para o lado, literalmen­te: nas eleições de 2014, Dilma Rousseff acusou Aécio Neves de empregar irmã, tio, três primas e três primos no governo de Minas Gerais; no duelo seguinte, o rival afirmou que o irmão da então presidente nunca fez nada na vida; no meio da tensão, Dilma acabou por cair, desmaiada; Aécio foi ouvido ao telefone a vangloriar-se do desfalecim­ento da concorrent­e.

Mas as campanhas eleitorais seriam um mero desfile tragicómic­o de candidatos exóticos ou apenas uma luta de galos para excitar as claques partidária­s, não fosse o facto de custarem caro. Mais: não fosse o facto de serem elas, no final das contas, o fim último da corrupção no país.

Nove em cada dez casos de políticos apanhados nas teias da Lava-Jato ao longo dos últimos anos foram-no porque usaram dinheiro sujo de esquemas de companhias privadas, como a Odebrecht, e de empresas estatais, como a Petrobras, para irrigarem as suas campanhas.

Por isso o Jornal Nacional passar propaganda política entre o título e o corpo de uma notícia sobre um novo corrupto da Lava-Jato tem tudo a ver. Não é água no chope coisa nenhuma, é ilustração.

Para quem vem da sóbria (cinzenta?) Europa, os primeiros anos deste carnaval eleitoral são um gozo; mas depois de se tornar hábito entedia, como entedia os brasileiro­s há 70 anos, quando Carareco, o hipopótamo do zoológico de São Paulo, obteve cem mil votos, o suficiente para ser eleito vereador

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