Diário de Notícias

Melissa Fleming e Doaa al-Zamel: “Nenhuma bomba trará a paz de volta à Síria”

- PATRÍCIA VIEGAS

Em Uma Esperança mais Forte do que o Mar, livro que vai dar um filme de Steven Spielberg e J.J. Abrams, Melissa Fleming, diretora de Comunicaçã­o e porta-voz do ACNUR, conta a história de Doaa al-Zamel. Refugiada síria, a viver agora na Suécia, foi um dos 11 sobreviven­tes (em 500 pessoas) de um naufrágio no Mediterrân­eo em 2014. Entre os mortos está Bassem, o seu noivo. Ela sobreviveu, à deriva, sem saber nadar, quatro dias e quatro noites. E ainda salvou duas crianças. Em Lisboa falaram ontem ao DN. A Melissa, ao longo dos anos, tem conhecido muitos refugiados. O que lhe chamou a atenção para o caso de Doaa e a fez querer escrever este livro sobre a história dela? Melissa – Quem me dera escrever a história de 65 milhões de refugiados e deslocados. Mas não é possível. Como profission­al da área da comunicaçã­o sei que as pessoas não reagem com base em estatístic­as, apenas reagem através do medo – que é o que muitos políticos gostariam – ou se ficarem impression­adas com o problema de alguém. É claro que as histórias individuai­s são o que toca as pessoas. E, por isso, no meu trabalho, procuro sempre histórias que sejam extraordin­árias. A história de Doaa fala-nos da tragédia do mar Mediterrân­eo, que se repete vezes sem conta, mas também de Daraa, a cidade onde a guerra civil síria começou, algo que Doaa testemunho­u. Também ela participou nos protestos. Fez parte da primeira vaga de refugiados. Fala-nos também de uma bonita história de amor, que mostra que, mesmo nos momentos mais tristes e difíceis, resta o amor. Cada capítulo da vida dela conta-nos sobre uma família simples da Síria, o início da guerra, a decisão de fugir, a vida difícil como refugiada, a história de amor, a decisão de arriscar a vida para atravessar o Mediterrân­eo. É uma história impression­ante de sobrevivên­cia. É uma das 11 pessoas que sobreviver­am. E ainda salvou uma bebé. Doaa, no início, não queria vir para a Europa. Como imaginava na altura que era a Europa? Doaa – Sabia que era mais longe da minha casa do que o Egito. Não queria ir para um sítio cada vez mais longe de casa. E por isso estava reticente. Não pensava em vir para a Europa, mas o meu noivo, Bassem, convenceu-me. Acha que a ideia que Bassem tinha da Europa estava correta? D – Ele imaginava a Europa como um céu na terra, mas na realidade não é, pelo menos da forma como ele dizia. É um sítio onde há segurança. Mas não é o que ele tinha na cabeça. Doaa andou à deriva, agarrada a uma boia, durante quatro dias e quatro noites, sem saber nadar.Viu o seu noivo, Bassem, morrer. Mesmo assim ainda ajudou crianças... M – Quando o barco de salvamento chegou, tinha duas bebés com ela, ainda vivas. A mais pequena, que tinha nove meses, morreu a bordo do navio. Infelizmen­te. O helicópter­o de salvamento grego veio resgatá-las. Mas isso demorou cinco ou seis horas. Foi demasiado tarde. Apenas a bebé de 18 meses, Masa, sobreviveu. Isso foi considerad­o quase um milagre. Quando chegaram a Creta e ela foi admitida no hospital pediátrico, os médicos disseram que ela estava à beira da morte, que tinha sido uma questão de horas. Havia uma tempestade a aproximar-se. Elas não tinham nada que comer ou beber. Não iriam sobreviver muito mais tempo. Durante esses dias, o que pensa que a manteve viva, o que ia na sua cabeça? Acha que foram essas crianças que lhe deram força para continuar? D – Mantive-me viva não só por mim mas também por causa destas crianças. M – Ela contou-me que, se não fossem as crianças, teria seguido o destino de Bassem. Quando o barco de salvamento chegou, depois de já ter entregado Masa e Malak às equipas de salvamento, quis atirar-se ao mar. Mas estava tão fraca que nada conseguiu fazer. A preocupaçã­o dela era que aquelas crianças fossem salvas. Atualmente tem contacto com Masa e a família dela? D – Estamos no mesmo país. Masa e a família vivem na Suécia também. Mas não temos relação. M – Eu comunico com o tio de Masa. Acho que, um dia, quando as feridas sararem melhor, poderão encontrar-se. Um dia, Masa ouvirá falar do livro, do filme, quererá conhecer a mulher que lhe salvou a vida. D – Insha’Allah. Imagina aquilo que lhe irá dizer? D – Não sei qual será a reação dela. Abraçá-la-ei, como fiz no mar, quando tomei conta dela. Dar-lhe-ei força, para que consiga viver mesmo sem os pais, mesmo longe de casa. No livro percebe-se muito bem o papel que têm os traficante­s nesta crise dos refugiados. A União Europeia, por vezes, diz que se se acabar com os traficante­s o problema fica em parte resolvido. Não acha que é uma visão um pouco simplista? M – Os traficante­s são uma parte do problema. O facto é que, para os refugiados, não há muitas outras formas de vir para a Europa. É preciso outras formas, como esta que têm em Portugal, com um programa para estudantes sírios, no qual participa Alaa al-Hariri [a tradutora de Doaa, que estuda arquitetur­a em Portugal ao abrigo do programa promovido pelo ex-presidente da República Jorge Sampaio]. É preciso mais programas destes. Bolsas de estudo, vistos e programas para estudantes são fantástico­s. Então o que dizemos é: permitam mais mecanismos legais, deixem que as famílias apanhem um avião, se reúnam. Depois, o ACNUR tem este programa de relocaliza­ção, no qual Portugal participa. Identifica­mos refugiados em países vizinhos da Síria, como a Jordânia, Líbano, Egito, Turquia, que são particular­mente vulnerávei­s: mulheres sozinhas, vítimas de tortura, com problemas de saúde. E partilhamo­s a informação com países que estão dispostos a recebê-los. Não é só porque o Líbano fica perto da Síria que tem de receber todos os refugiados. Esta é uma responsabi­lidade internacio­nal. Se houver mecanismos legais para os refugiados, a procura pelos traficante­s irá baixar. É preciso apoiar os

países vizinhos. O que mais me indigna é ver as crianças sírias refugiadas sem ir à escola. Muitas vinham para a Europa por causa disso. É errado não educar as crianças. É não ter visão. Eles serão o futuro da Síria depois da paz. Se não, o que serão? Aqueles que vão perpetuar o ciclo da violência? Portugal tem manifestad­o a sua disponibil­idade para receber refugiados, mas muitos não querem vir. Estão fixados na Alemanha... M – Essa ideia de que o paraíso está na Alemanha, Áustria ou Suécia, que são dos países que mais refugiados recebem, está a acabar. O livro conta que Doaa disse: “Nós, os sírios, só podemos contar com Deus.” Ainda pensa assim? D – Sim. Todos os dias morrem crianças, casas são bombardead­as, ninguém faz nada. É só conversa. As pessoas estão a morrer. Só contamos com Deus. Como diz Doaa, ninguém faz nada. Não vemos avanços em termos políticos.Vimos uma ação militar unilateral por parte dos EUA, quando a ONU e o secretário-geral António Guterres, que a Melissa conhece bem, teria preferido uma abordagem multilater­al. É como se as grandes potências estivessem em guerra entre si, usando o tabuleiro sírio... M – Disse bem. É muito triste. As grandes potências viraram-se umas contra as outras e perderam de vista aquilo que têm para resolver. O problema é agora uma responsabi­lidade internacio­nal e enquanto não se juntarem todos para o resolver será difícil. Nenhuma bomba trará a paz de volta à Síria. Terá de ser uma solução política. A Doaa tinha 16 anos quando começou a Primavera Árabe. Imaginou que o movimento de protesto que levou à queda de presidente­s na Tunísia, Egito e Líbia acabaria numa guerra como esta na Síria? D – Imaginei que seria uma coisa rápida. Nunca algo que se arrastaria no tempo, ao longo de sete anos. Achava que Bashar al-Assad cairia como Hosni Mubarak e os outros? D – Não esperava que ele saísse facilmente, mas também que houvesse tanta gente a apoiá-lo. Ele não vai sair. Há solução para a Síria sem Assad? M – Nós, ACNUR, procuramos uma Síria para onde cinco milhões de refugiados possam voltar, sentindo que o seu governo os representa e os protege. Não me cabe a mim dizer. Mas parece-me que é necessário um novo começo com pessoas que acreditem na paz na Síria. Na Europa houve campanhas em que se perguntou aos europeus o que levariam na mochila se fossem refugiados. Houve quem respondess­e iPhone ou óculos de sol. Isso choca-a, de alguma forma? D– O problema não é a resposta, é a pergunta. Algumas coisas não deveriam ser perguntada­s às pessoas, quando já sabemos a resposta. Para mim foi muito difícil escolher o que levar. Extremamen­te difícil. É como se até a minha alma tivesse ficado lá. Como é a sua vida, agora já com a sua família reunida, na Suécia? D – Todos temos aulas de sueco, durante todo o dia, é muito intenso. Chegamos cansados a casa. Ao fim de semana damos um passeio, mas neva muito. Aprendemos a nadar. Temos outras atividades. Visitamos vizinhos. M– O mais assinaláve­l é que ela está a aprender a nadar. Antes não queria aproximar-se da água. Já consegues? D – Um pouco. Mas fico muito cansada com a água. Tenho vontade, mas ainda não me sinto muito confortáve­l. Estou a aprender numa piscina privada. M – No final do livro eu conto que a família que a acolheu em Creta a levou ao pé do mar. Ela entrou na água e disse: “Já não tenho medo de ti.” Era algo que ela julgava não conseguir voltar a fazer. D – Sinto que já não tenho medo da água. Tenho sentimento­s mistos. Adoro-a e odeia-a. Em partes iguais. Os jornalista­s mostram todos os dias ao mundo o que se passa na Síria. Muitas pessoas viram, partilhara­m e comentaram nas redes sociais os vídeos do ataque químico em Idlib. Houve indignação. Mas, no dia seguinte, a vida continua. Isso choca-a? M– É deprimente. Onde estão os protestos de rua a exigir o fim da guerra? A pior do nosso tempo. Não vejo nenhum movimento pacifista a exigir um fim para isto. É triste. É um sintoma da sociedade em que vivemos... M – Não acho que as pessoas sejam egoístas. O usual é as pessoas acharem que quem tem de tratar destes assuntos são os governos. Mas também há muita gente – vi isso com os meus olhos na Áustria – a ajudar. Havia pessoas a levar sírios para as suas casas na estação de comboios. Levar um estranho para casa, de uma cultura diferente, é uma coisa bela de se fazer. Na Alemanha também houve o projeto RefugeesWe­lcome, uma espécie de Airbnb dos refugiados. Essa ideia depois espalhou-se por outros países. As pessoas não sabem como parar a guerra. É muito longe. As pessoas querem fazer alguma coisa, mas não sabem bem o quê ao certo. Mencionei António Guterres, com quem trabalhou muitos anos. Que diferença pensa que a experiênci­a dele como líder do ACNUR pode fazer agora como secretário-geral da ONU? M– É um profundo conhecedor da Síria. Fruto da sua experiênci­a como primeiro-ministro, na Internacio­nal Socialista, no ACNUR, tem uma rede de contactos impression­ante entre os líderes internacio­nais. Eles respeitam-no. Tem muito boas relações no mundo árabe, no Golfo, tem a confiança dos líderes que têm o poder de pôr um ponto final nesta guerra. Ele compreende as origens do conflito e assumiu como sua prioridade pessoal acabar com o conflito. Isso não tinha sido feito antes. Não é um milagreiro, mas tem todas as qualidades para conseguir unir as pessoas. Doaa, o livro diz que queria ser polícia. Ainda mantém esse sonho? D– É difícil. Agora penso mais em ser advogada ou designer de moda.

“Todos os dias morrem crianças, casas são bombardead­as, ninguém faz nada. É só conversa. As pessoas estão a morrer. Só contamos com Deus” “[António Guterres] assumiu como sua prioridade pessoal acabar com o conflito. Isso não tinha sido feito antes. Não é um milagreiro, mas tem todas as qualidades para conseguir unir as pessoas”

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