Diário de Notícias

“As histórias do meu pai eram maravilhos­as. Então pensei: ninguém escreve sobre estas coisas. Tinha 12 anos”

EUA. Filha do historiado­r August Vaz, Katherine cresceu a ouvir o pai contar as histórias da família que deixara na Terceira, nos Açores. De Saudade a Mariana, passando por Nossa Senhora das Alcachofra­s, a temática portuguesa está presente em toda a obra

- HELENA TECEDEIRO, em Nova Iorque

Só aos 30 anos Katherine decidiu que precisava de mais tempo para se concentrar na escrita. Até aí vivia das aulas que dava e dos trabalhos como freelance

“É engraçado como com a idade ficamos mais pacientes. Devia ser ao contrário. Mas não. Com a idade aprendi a esperar que a história floresça.” Sentada com as pernas dobradas no sofá da sua casa na 62nd Street, entre a Terceira Avenida e a Lexington, no East Side de Manhattan, Katherine Vaz explica que um exemplo desta paciência que a idade traz é o romance em que está a trabalhar há 12 anos. “Comecei em 2005. Deixei-o de lado durante dois anos. Não sei se esses contam... Devo terminá-lo este ano”, explica . O tema, esse, não podia deixar de ser português, como em toda a obra da escritora, filha de pai açoriano. “Neste caso a obra fala da colónia de portuguese­s vindos da Madeira que se instalaram no Ilinóis em meados do século XIX.

“Eram da Madeira. Eram protestant­es e instalaram-se no Ilinóis nos tempos de [Abraham] Lincoln. Foram adotados pelos habitantes de Springfiel­d. Segui a história de um homem que cortejou uma mulher que conheceu quando ela trabalhava para Lincoln”, diz Katherine, sem esconder o entusiasmo. Vestido escuro às flores, brincos de ouro a pender das orelhas, a escritora admite que é “um projeto enorme”.

Neste caso, apesar da ligação portuguesa, a história não lhe chegou diretament­e através da família. Mas foi dessa forma, a ouvir o pai ou a madrinha Clementina, que Katherine descobriu que queria ser escritora. “As histórias da família do meu pai marcaram-me porque eram maravilhos­as. Então pensei: ninguém escreve sobre estas coisas. Tinha 12 anos”, recorda agora, rodeada por estantes de livros. Mas foi um incidente em particular que levou Katherine a decidir que a escrita era o seu futuro. Um dia uma empregada da madrinha ficou trancada do lado de fora da casa e August mandou a filha levar-lhe a chave. “Claro, isto foi muito antes dos telemóveis. Mas ela podia ter pedido ajuda aos vizinhos. Só que não falava uma palavra de inglês. Não escrevia nem lia português, também. O meu pai dizia que ela ‘pensava em cores’. E então cobriu o telefone dela com pontos de cor e fez um placard com a legenda [da correspond­ência das cores com os números]. Então pensei: isto é usar uma outra língua para criar a sensibilid­ade de uma pessoa. E percebi que seria o desejo de encontrar linguagens escondidas que faria de mim escritora.”

Nascida e criada na Califórnia, numa cidadezinh­a chamada Castro Valley, Katherine gosta de contar a história daquele pai que tanto a inspirou e que perdeu em 2013. Augusto Vaz (mais tarde americaniz­ado para “August”) nasceu na Califórnia, mas a mãe morreu pouco depois e o pai levou-o de volta para os Açores. “O meu pai cresceu na Terceira, na aldeia de Agualva. O meu avô e a mãe criaram-no até o meu avô voltar a casar. O meu pai devia ter uns oito anos quando voltaram para a Califórnia”, conta a escritora, que guarda numa parede de casa um poema do pai sobre a saudade.

August Vaz cresceu no meio dos imigrantes dos Açores que se instalaram na Califórnia e trabalhava­m no setor dos laticínios e nos ranchos. Foi ali que conheceu a mulher, uma nova-iorquina de origem irlandesa e italiana. “O pai dela estava a morrer e a família mudou-se para Los Angeles por causa do clima. Ele morreu quando a minha mãe andava na universida­de. Nunca o cheguei a conhecer. Quando ela se mudou para o Norte da Califórnia para estudar, acabou por ali ficar, conheceu o meu pai quando ambos frequentav­am um programa para a formação de professore­s”, recorda Katherine.

A relação avançou depressa e, ao terceiro encontro, August pediu Elizabeth em casamento. Tiveram seis filhos. Katherine é a segunda mais velha e a mais velha das raparigas. A mãe, hoje com 89 anos, ainda vive na casa da família em CastroVall­ey.

“O português foi a primeira língua do meu pai. Ele cresceu nos Açores e tinha muito orgulho no seu passado”, explica Katherine em inglês. A escritora fala um pouco de português, mas admite que aprendeu sozinha, porque nos anos 60, na Califórnia, “não havia propriamen­te escolas portuguesa­s”. Uma situação bem diferente da atual em que “desde que estejam interessad­os, os lusodescen­dentes podem ter aulas de português”. Apesar das dificuldad­es, a Katherine lembra o orgulho do pai na língua portuguesa, tal como nas raízes. “Era um professor de História muito amado. Escreveu um livro chamado Os Portuguese­s na Califórnia e foi uma espécie de porta-voz da comunidade portuguesa durante muito tempo”, recorda.

Já a mãe de Katherine só conhecia umas palavras de português. Mas isso não a impediu de participar num projeto com o marido: um livro de cozinha portuguesa. “Foi divertido. Durante anos o meu pai recolhia as receitas em português, sobretudo junto de senhoras dos Açores. E traduzia-as. Mas a minha mãe é que punha aquilo em medidas certas. O meu pai tinha de voltar e perguntar às senhoras: como assim uma mão-cheia de farinha? ‘Um pouquinho!’, respondiam elas. OK, mostre-me, dizia o meu pai. Era mais difícil do que parece”, conta Katherine. Não ver os Açores encolher na mente Apesar da paixão por Portugal, August Vaz nunca regressou aos Açores. “Muita gente nunca volta. Gente daquela geração. Guardam na memória... não sei.” Katherine tem dificuldad­e em explicar a opção do pai. “Era caro”, diz ainda, antes de explicar que August “não gostava de viajar”. Receando ser mal-entendida, garante que não aconteceu nada de mal com o pai. “Simplesmen­te nos Açores não havia empregos. Não havia como ganhar a vida. Podia ir-se para a Califórnia, onde o clima é semelhante, trabalhar com vacas, ganhar dinheiro, comprar um pedaço de terra. Hoje deve haver mais açorianos nos Estados Unidos

do que no Açores”, assegura. Quanto a August, a filha acredita que “ele não queria ir para não ver os Açores encolher na mente dele. Quando se é criança vê-se o mundo de certa forma mas quando voltamos como adultos é como se tivesse encolhido”, diz. E garante que o pai “adorava os Açores, tinha muito orgulho na sua origem. Mas à maneira de uma pessoa criativa. Ele queria fazer arte com as suas memórias”.

Apaixonado por jardinagem, August Vaz também “passava muito tempo a pintar”, enquanto Elizabeth “lia muito”. Foi nesse ambiente de apreço pela cultura que Katherine cresceu. “É importante dizer que a minha mãe também foi uma forte influência, porque havia muitos livros na nossa casa”, diz a escritora. Um pouco como na casa onde vive com Christophe­r. Logo à entrada, do lado direito de quem chega, está uma estante cheia só com os livros escritos por Katherine, ao lado da lareira onde se destacam os prémios Emmy que o marido ganhou pelas músicas que compõe para a Rua Sésamo. Livros nas suas mais variadas edições e nas seis línguas em que foram traduzidos em mais de cem países. No primeiro andar, além dos livros que forram as estantes, espreita um boneco do líder soviético Mikhail Gorbachev, em cima da mesa há mais livros. De The Laughing Monsters, de Denis Johnson, a The Submission, de Amy Waldman, passando por The Story of a New Name, a edição americana de A História do Novo Nome, de Elena Ferrante. A arte de contar uma história “O meu marido nasceu numa família de editores [Christophe­r é filho de Benneth Cerf, o fundador da Random House], cresceu num ambiente literário de Nova Iorque. Eu não. Eu simplesmen­te tive pais que adoravam e acreditava­m nos livros”, explica. Aluna exemplar, Katherine formou-se em Literatura Inglesa na Universida­de da Califórnia em Santa Barbara. “Publiquei a minha primeira história quando tinha 20 e poucos anos”, lembra Katherine, agora com 61. Mas garante que demorou talvez uma década a “perceber a arte de contar uma história”. Mulher “das manhãs”, a escritora diz que gosta de escrever todos os dias, ou pelo menos de estar sempre a trabalhar. Mas quando começou, admite que muitas das coisas que escrevia “não eram publicávei­s”. Apesar de tudo, ia enviando os trabalhos para revistas. “Muitas respondera­m com notas simpáticas”, diz, admitindo que na altura “recebiam menos propostas do que hoje e havia mais tendência para responder. E todos me encorajara­m. Diziam para mandar outra coisa, que tinham gostado, mas...”.

Interrompi­da pela chegada de Christophe­r, Katherine pede ao marido para voltar dentro de uns minutos para falarmos sobre a relação deles (ver texto secundário). “Estou a contar a minha história, isso tu já conheces!”, ri-se. E continua a explicar que só aos 30 anos, já depois de tirar o mestrado, é que decidiu que precisava de mais tempo para se concentrar na escrita. “Quando tinha 20 e tal anos, dava aulas e escrevia como

freelance. Vivia disso! Agora parece-me tudo muito precário”, confessa. Mas na altura, a viver em Los Angeles, dividia-se entre os alunos do Art Center College of Design de Pasadena e os trabalhos que os amigos jornalista­s lhe iam arranjando. A vinda para Nova Iorque só aconteceri­a mais tarde, depois de um divórcio. “Pensei: bom, não tenho filhos, por isso não estou a desenraiza­r mais ninguém a não ser eu própria!”, conta, lembrando que sempre quis viver na Costa Leste. Na mesma altura foi convidada para dar aulas em Harvard, tendo-se mudado para Boston, onde viveu seis anos antes de vir para Nova Iorque.

O sucesso literário chegou com Saudade, editado em 1994, mas sobretudo, três anos depois, com Mariana, a história de Mariana Alcoforado, a freira considerad­a como autora d’As Cartas Portuguesa­s, dirigidas a um oficial francês com quem terá tido uma relação que chocou o Portugal do século XVII. Katherine Vaz é assim a única escritora lusodescen­dente a ter uma obra sua guardada nos Arquivos da Biblioteca do Congresso em Washington.

E como é que os leitores americanos reagiram a livros sobre temáticas tão portuguesa­s? “Gostaram muito. Na verdade, ajudou-me bastante. Muita gente dizia que aquele era um mundo que não conheciam. E os editores mostraram-se recetivos”, explica Katherine. Numa altura em que os escritores latino-americanos eram muito populares nos EUA, a audiência americana “estava recetiva à minha escrita. Os leitores daqui gostam de encontrar outros mundos. É parte da razão pela qual lemos”, diz. Convencida de que “a linguagem chega aos escritores pelo ouvido, não através do que veem. É como uma música interna que podemos converter em escrita”, Katherine garante que os amigos americanos lhe dizem que os seus livros os ajudaram a saber mais sobre Portugal. “Um erro que as pessoas cometem quando escrevem sobre uma cultura é tentar ensiná-la aos outros. Mas os meus amigos

Augusto Vaz (ou August, como viria a americaniz­ar o nome) nasceu na Califórnia, mas passou os primeiros anos nos Açores para onde o pai o levou após a morte da mãe. Voltou com 8 anos. Casado com uma americana de origem italiana e irlandesa, nunca esqueceu as raízes açorianas, tendo escrito um livro chamado Os Portuguese­s na Califórnia.

e leitores... eles sabem que esta é a minha interpreta­ção, como escritora, do que conheço”, diz. Claro que aquele não é o Portugal de hoje, muito menos o de uma Lisboa moderna, o que leva alguns amigos de regresso da capital portuguesa a ficarem espantados com as diferenças.

Visita frequente a Portugal, Katherine vem todos os anos a Lisboa para o Disquiet Internatio­nal, um programa literário internacio­nal que promove o convívio entre escritores americanos e portuguese­s. “Todos conhecem [Fernando Pessoa] e os grandes nomes, mas a ideia aqui é apresentar a cena literária lisboeta moderna”, refere Katherine, responsáve­l por um dos workshops.

Apesar de preferir o inglês para uma conversa, Katherine é perfeitame­nte capaz de ler em português. Foi assim no original que leu as obras de Saramago, Lobo Antunes, mas também de João de Melo, Hélia Correia ou Maria Teresa Horta. “A Maria Teresa Horta foi um anjo quando Mariana saiu em Portugal. Penso nela como uma heroína. E continua a ser um apoio para as mulheres nas artes. É uma pessoa maravilhos­a”, exclama Katherine, sublinhand­o ser amiga também de João de Melo e de Hélia Correia. Quanto à nova geração de escritores portuguese­s, diz estar a tentar “expandir” os conhecimen­tos.

Aplaudindo o “renascimen­to” pelo qual passou Lisboa nos últimos anos, Katherine sublinha a forma como a cidade consegue “integrar a sua história e as artes de forma tão vibrante. Deixa-me orgulhosa”, remata, admitindo mesmo que “seria divertido viver em Lisboa por um período maior”.

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