Luís Miguel Cintra oferece uma máquina de fazer pensar
A peça Um D. João Português, o primeiro trabalho do encenador após o fecho da Cornucópia, estreia-se amanhã no Polo da Junta de Freguesia do Afonsoeiro, junto ao Montijo
“Tenho um objeto em mãos que é complicadíssimo, muito diferente de uma peça normal. A abordagem da própria peça é mais complexa do que é costume fazer-se: não é só a encenação da peça de Molière [D. João ou o Banquete de Pedra], é a invenção de um jogo cénico a partir da peça de Molière.” Antes do início do ensaio aberto ao público de Na Estrada (da Vida), primeiro segmento de Um D. João Português, Luís Miguel Cintra explica aos espectadores como se chegou àquela tarde do último sábado, no Polo da Junta de Freguesia de Afonsoeiro, junto ao Montijo, onde partilhou uma etapa da construção deste espetáculo que marca o seu regresso ao teatro após o fecho da Cornucópia, em dezembro. E com direito a extras.
Para além de se assistir ao amadurecimento da última cena do primeiro segmento da peça que amanhã e no domingo será apresentado nesse mesmo espaço, o público foi ainda brindado com um mergulho no processo criativo de Luís Miguel Cintra, através das palavras do próprio encenador.
Ora, o objeto “complicadíssimo”, que depois do Afonsoeiro se vai apresentar em Viseu e em Guimarães, estando ainda em curso negociações para representações em Setúbal, é uma adaptação de Cintra da peça de Molière. Em jeito de aviso “às pessoas de fora”, refere: “Muito poucas vezes, aquilo que se vê em cena corresponde à escrita do autor. E, quanto mais o teatro tem avançado, mais longe está o texto que o autor escreve da execução de um espetáculo. Como se fossem duas coisas completamente diferentes (ou complementares ou opostas), chegando-se por vezes a um extremo de praticamente se esquecer o texto original e fazer outra coisa que não são as peças que lá estão na origem. Eu não gosto muito disso, gosto de começar com ser fiel ao original.” Aqui chegados, poderia pensar-se que iríamos ter uma representação fidelíssima de D. João ou o Banquete de Pedra. Nada de mais errado. Excertos de textos de outros autores, personagens criadas pelo próprio Cintra e um palco que é a sala de baile/ginásio de um clube recreativo são algumas das invenções que introduziu neste jogo cénico e que ao longo de mais de 40 minutos explica, ora interpelando o público ora os atores.
O porquê de tantas alterações é uma viagem ao seu mundo interior: “Na minha cabeça, quando leio uma peça de teatro é uma confusão porque estou constantemente a convocar memórias, contradições, estou em diálogo permanente com tudo aquilo que aparece. Como encenador, a minha ambição seria pôr em cena alguma coisa que fosse parecido com o que se passa na minha cabeça quando a leio. Ou seja, em vez de limpar, complexificar, amontoando os dados para que o espectador tenha muitos dados tal como eu tive.”
É por isso que junta “outros textos de outras épocas que jogam na minha cabeça com aquele texto do século XVII de Molière”. E concretiza: “Alguns diálogos entre D. João e o seu criado Esganarelo [as personagens principais de Molière] são muito interessantes de comparar com os de Vladimir e Estragon em À Espera de Godot, de [Samuel] Beckett, um autor do século XX.” Por outro lado, continua, “achei que há uma espécie de companheirismo sentimental entre o D. João e o criado que me lembrava o D. Quixote e o Sancho Pança. Apesar de o D. Quixote ser anterior [ao D. João], há um excerto que parece exatamente uma das cenas da peça”. E também há deixas de Gil Vicente ou ainda de Bertold Brecht.
Explica a opção: “Já fiz tantas peças como encenador que está a dar-me um certo gosto experimentar um tipo de linguagem diferente do que tenho feito. Tenho horror em gastar tempo a fazer uma coisa que já fiz.” Uma experiência que passa ainda por incluir um inocente, duas majorettes e uma professora de aeróbica numa peça do século XVII que conta a história de um nobre mulherengo que engana todas as mulheres com quem se vai casando, acabando por viver em fuga, percorrendo várias cidades na companhia do seu criado.
E, antes de se ver o amadurecimento da última cena, Luís Miguel Cintra desvenda também o porquê da escolha do local: “Tínhamos hipótese de fazer a peça no Cineteatro [ Joaquim d’Almeida, no Montijo], mas não quis porque no Cineteatro já se tem a relação palco-plateia estabelecida. Ora, aqui a relação que se estabelece não tem nada, mas absolutamente nada que ver. Ao princípio, quando as pessoas entrarem, o que veem é um clube recreativo, com coisas estranhas e objetos fora do sítio e o que se pretende é que o arranque do espetáculo seja uma reação em relação a este lugar. Há ali um palco, será que é no palco que a peça vai ser apresentada? Será que esta pessoa pertence ou não pertence à peça?” É uma “experiência”, reconhece, que pode ou não ser bem conseguida, mas o importante, destaca, “é tentar”. “A questão do êxito é absolutamente secundária. Se não se conseguir, acho que não é tempo perdido, porque em relação ao teatro já estou muito desinteressado de me sentar numa plateia à espera de que me contem uma história. Acho que o teatro é uma máquina de pensar. O que me interessa é a reação que o espetáculo pode provocar.” Amanhã sai o veredicto.
Excertos de textos de outros autores e personagens criadas pelo próprio Cintra são algumas das invenções que introduziu