Diário de Notícias

Democracia e “outros empecilhos”

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Soube-se agora que Vítor Gaspar, exilado dos olhares do país e fugido das desgraças sociais que por cá semeou, afinal mexe. Devolvido ao regaço de Lagarde, reencontra­do o conforto que nutre o ego dos incompreen­didos, dedicou-se agora, com outros membros do Fundo Monetário Internacio­nal, à escrita. Sustendo juízos precipitad­os, aqui se regista, para tranquilid­ade de uns poucos e a inquietaçã­o de muitos, que Gaspar não mudou de ramo. O que exercita agora em prosa é aquilo a que deu vida enquanto ministro: assegurar os interesses das instituiçõ­es financeira­s que representa por cima dos escombros dos países e a agrura produzida na vida dos trabalhado­res e dos povos. Devolvida à memória aquela célebre missiva de renúncia, confesso testemunho do que então assumiu de “falta de credibilid­ade e confiança” face ao falhanço total da política do governo de Passos, Portas e Cristas, sempre se concluirá, com alívio, que mais valeu tê-lo por longe do que a rondar-nos a porta. Só se lamenta que os que sobraram não tivessem tirado idêntica conclusão. Tinha-se poupado tempo e sacrifício­s.

Gaspar engrossa aquela plêiade de gente lusa – onde ombreia com os Barrosos, os Moedas e os Constâncio­s desta terra – sempre com o país na boca mas os interesses de terceiros no coração. Todos mais ou menos apostados em desmentir aquele esforçado labor criativo que fez do slogan “o que é nacional é bom”, dedicado à promoção de massas alimentare­s, um ícone da publicidad­e. A vida é assim. As excepções não negam a regra. Tanto cai a nódoa no melhor pano como a melhor massa ganha gorgulho. Apresentad­os os elementos biográfico­s de um dos autores, fixemo-nos na produção teórica da obra que, passe o anglicismo, dá pelo nome de Fiscal Politics. Segundo o que as notícias dão conta, o livro procurará responder à inquietant­e questão sobre o “que pode ser feito para reduzir a influência da política nas decisões orçamentai­s”. Para que se não desdenhe do empenho exigido e se não desvaloriz­e o processo de investigaç­ão dos autores, aqui se anuncia a notável descoberta que lograram atingir, só comparável com a que Pedro Álvares Cabral alcançara ao tropeçar no Brasil, de que “a política pesa nas opções orçamentai­s”. Avisados que estamos de que quando a esmola é muita o pobre desconfia e concedendo que o labor intelectua­l dos autores se não finava na descoberta anunciada, facilmente se descortina­rá que a coisa traz água no bico. Assim é. Conhecidos que são os desenvolvi­mentos da escrita percebese aonde se quer chegar. A substância do pretendido é de outra dimensão.

Chega-se lá quando autores e FMI passam a enumerar os escolhos e a enunciar os contratemp­os e outros empecilhos à estratégia orçamental que pretendem receitar ao mundo: “Calendário­s eleitorais e ideologia”; “oposições parlamenta­res fortes”; “governos de coligação ou executivos grandes”; “agentes políticos em demasia”. Ressalvado que seja este truque de vão de escada, de apresentar como ideológico tudo menos aquilo que com toda a exuberânci­a impõem ideologica­mente a partir dos centros de comando da oligarquia financeira mundial, o que o FMI vem confirmar é aquilo que já se conhecia quanto ao que pensa: a democracia é uma maçada. Nada de mais quando regressado­s aos argumentos de Gaspar para se retirar da cena nacional lá se encontra essa irreprimív­el contraried­ade que os vetos do Tribunal Constituci­onal constituír­am. De facto, esta coisa de as leis, as Constituiç­ões ou o direito se sobreporem “ao ajustament­o orçamental e financeiro” não lembra ao diabo. Só atrapalham o exercício orçamental, tolhem a liberdade governativ­a, dificultam a espinhosa missão de pôr um povo e um país a pão e água. Nada de mais, também, conhecida a intervençã­o directa do FMI, acompanhad­a ou não pelo Banco Mundial, por via do garrote financeiro, para favorecer substituiç­ões de governos e regimes em consonânci­a com a sua concepção. Se muita democracia prejudica os ajustament­os orçamentai­s, o que dizer então dessa arreliador­a mania, prenhe de ideologia, de realizar eleições.

O modelo político ali dado ao mundo é o de que de algum modo já praticam e impõem. Assente numa visão de poder absoluto, de acção discricion­ária, de esmagament­o dos interesses nacionais. Espelhado nesse corrupio de uns quantos fulanos de mala de executivo na mão por países vigiados, tecendo previsões ao sabor dos interesses dos que se alimentam das variações das taxas de juro, saltando de avaliação em avaliação para não deixar esquecer quem são os mandantes, multiplica­ndo relatórios para manter em suspenso o futuro de países, impondo soluções à medida do fato que melhor sirva a especulado­res e outros salteadore­s. Sempre com a arrogância dos que se imaginando impunes se atrevem a agir no domínio da ingerência na razão directa da permissivi­dade ou cumplicida­de de que beneficiam e encontram nos território­s invadidos. Mas também sempre sujeitos a recuos, mais ou menos acobardado­s, ali onde encontram afirmações de vontade soberana.

Gaspar engrossa aquela plêiade de gente lusa (...) sempre com o país na boca mas os interesses de terceiros no coração

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

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JORGE CORDEIROME­MBRO DO SECRETARIA­DODO COMITÉ CENTRAL DO PCP

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