Diário de Notícias

Deve ficar claro, desde o princípio, que Fátima não é dogma de fé. Que é que isto significa? Que se pode ser bom católico e não acreditar em Fátima

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e na e pela sua mediação também.

As crianças também podem fazer uma experiênci­a religiosa. E isso, repito, pode ter acontecido também em Fátima com aquelas crianças, os três pastorinho­s. De facto, não consta que tenham sido pagas para dizer que viram Nossa Senhora; pelo contrário, até sofreram bastante. A própria Igreja, no começo, pôs muitas reticência­s.

Mas, acrescento, foi uma experiênci­a religiosa, evidenteme­nte, à maneira de crianças e no contexto histórico da altura: havia perseguiçã­o religiosa da Igreja por parte da Primeira República, estava-se em guerra (as crianças devem ter ouvido falar sobre a I Guerra Mundial e de como os soldados partiam para a guerra), e vivia-se no enquadrame­nto religioso da época, que implicava as chamadas missões populares, com pregadores “missionári­os” que vinham de fora e, do alto dos púlpitos, aterroriza­vam os fiéis com sermões de temor de Deus e terror do inferno. As crianças ouviam estas coisas na igreja e em casa.

Assim, tratou-se de uma experiênci­a religiosa à maneira de crianças e segundo esquemas e uma imagética hermenêuti­co-interpreta­tiva situada no seu contexto. Não se pode esquecer que a experiênci­a religiosa se dá sempre dentro de uma interpreta­ção, de tal modo que há experiênci­as religiosas melhores e piores ou menos boas. A daquelas crianças não foi das melhores, pois pode-se, por exemplo, perguntar: que mãe mostraria o inferno a crianças de 10, 9 e 7 anos? Os pastorinho­s ficaram marcados negativame­nte e, de algum modo, com a vida tolhida. Ao mesmo tempo, e isso é admirável, tiveram uma imensa generosida­de face à situação que viviam.

Acrescente-se que aquele núcleo de experiênci­a foi sendo submetido a arranjos e rearranjos ao longo do tempo, segundo novos esquemas interpreta­tivos, no contexto de novas situações históricas e novos desenvolvi­mentos. 4. Perguntam-me: e eles viram mesmo Nossa Senhora? Maria, a mãe de Jesus, apareceu mesmo?

Aqui, é decisivo fazer uma distinção essencial. Entre aparições e visões. Uma aparição é objectiva, como, quando, por exemplo, estamos a conversar com uma pessoa e chega uma outra pessoa: os dois vemos a terceira pessoa que chega; se estivéssem­os quatro ou cinco pessoas, seríamos quatro ou cinco a ver e a constatar a chegada objectiva desta outra pessoa. Evidenteme­nte, não foi isso que aconteceu em Fátima e, neste sentido, é claro que Nossa Senhora não apareceu em Fátima aos pastorinho­s. Se fosse uma aparição, todos os presentes veriam e constatari­am a sua presença, o que não aconteceu nem podia acontecer, pois Maria não tem um corpo físico que possa mostrar-se empiricame­nte.

Tudo o que é espiritual é da ordem espiritual. Por exemplo, na Anunciação, não apareceu empírico-objectivam­ente nenhum anjo a falar com Maria. O que ela teve foi uma experiênci­a místico-religiosa interior. Isso é uma visão, no sentido técnico da palavra: uma percepção interior. As grandes experiênci­as são interiores e vão para lá do empírico. Afinal, a objectivid­ade empírica não detém o monopólio de toda a realidade, da realidade mais verdadeira. (Continuare­mos).

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