Diário de Notícias

Um braço que nada e quer chegar

- FERREIRA FERNANDES

Nesta semana não reconheci as cadeiras. Frágeis, com tampo de ráfia, deveriam ter-me chamado a atenção numa igreja com nave tão alta. Sentei-me e também não me recordei do altar com baldaquino, nem dos vitrais. Talvez eu pensasse em outra coisa quando numa tarde do verão de 1973 fui ao encontro clandestin­o na Igreja de Saint-Ambroise, no boulevard Voltaire. Dias antes, tínhamos feito a última noite à Maio de 68, no Quartier Latin. Os fascistas da Ordre Nouveau marcaram um comício na Mutualité, sala de espetáculo­s e de comícios que na inauguraçã­o tinha exatos 1789 lugares sentados – homenagem à data da Revolução Francesa. A Ordre Nouveau ali era uma intoleráve­l provocação.

Era o grupo mais violento de extrema-direita e naquela noite fazia um comício contra a emigração. No ano anterior tinha criado um movimento, Front National, e oferecera a presidênci­a a um tal Jean-Marie Le Pen, quarentão fascista, para não parecerem só jovens de cabeça quente. A minha organizaçã­o, a Ligue Communiste, era a que mais andava à caça da Ordre Nouveau, nos intervalos em que não era o contrário. Pusemos uma gravata para passar as barragens policiais à porta das estações de metro no Quartier Latin e lá fomos esmagar os fascistas no ovo.

Por causa da pancadaria, Marcelinn, o ministro das polícias, interditou a Ligue Communiste e a Ordre Nouveau. Foi por isso que me encontrei naquele verão de 73 na igreja de Saint-Ambroise – ia saber como nos iríamos reorganiza­r. Mas, mais do que isso, pensa- va eu e certamente o camarada que veio ter comigo a sussurrar, fingíamos que estávamos na Resistênci­a francesa. Contando bem, o maquis tinha sido só há 30 anos... Pouco depois da Ligue Communiste ser proibida, fizemos outra, com nome talvez mais tranquiliz­ador: Ligue Communiste Révolution­naire. Já Le Pen aproveitou a proibição da Ordre Nouveau para tomar conta sozinho do Front National. Senti-me um bocadito envergonha­do por desta segunda vez, há dias, na Igreja de St. Ambroise, não me lembrar das cadeiras. E por o esquecimen­to não ser já terem passado 44 anos, mas pela emoção que vivi naquele dia distante. Uma comparação indecente: não, não vivíamos o maquis, apesar de o pai Le Pen e os seus apaniguado­s serem os herdeiros dos colaboraci­onistas nazis.

Uma coisa é recordar, outra é meter os pés pelas mãos no tempo. Do recordar gosto, por isso um dia destes comecei a jornada que aqui conto, passando à frente do Théâtre de la Renaissanc­e, vizinho da Praça République. Eu tinha fisgada uma homenagem. Mouloudji tinha passado os anos 30 a cantar e a fazer filmes para a Frente Popular, palavras de Prévert e cenas de Carné, foi resistente durante a guerra e voltou cantor depois dela. Em L’Autoportra­it, ele retrata-se assim: “Católico pela minha mãe/ Muçulmano pelo meu pai...” e por aí adiante. “Ateu, oh, graças a Deus/ Monárquico pela minha mãe/ Fatalista pelo meu irmão/ Comunista pelo meu pai...” Em 1974, Mouloudji, filho de bretã e cabila, berbere da Argélia, cantou no Renaissanc­e. No fim de uma das canções, a gravação guardou, após um silêncio breve, uma voz fresca e rendida, do fundo da sala: “Merci!”

Foi o que eu nunca lhe soube dizer, ao cantor que mais me evoca Paris, por isso continuei a andar. Fui tirar a limpo o que, dias antes, em visita comovida mas distraída, eu suspeitei mas não confirmei. A poucos quarteirõe­s da Praça da République, na Rua Bichat, fica o bar Le Carrillon – foi um dos lugares dos atentados de novembro de 2015. Ali, e no restaurant­e em frente, 15 mortos. Entrei de novo no Le Carrilon. Um barril de rum feito em casa, um cartaz de happy hours anunciando a cerveja mais barata, um balcão de cobre, enfim, um bar. Uma parede de fotos, Miles Davis, Fernandel, Zidane..., uma casa de bom gosto. À porta do escritório vi uma velha foto que me ficara na memória. Uma família cabila, os pais, ele de turbante, as três filhas e um rapaz com grande rádio feito mala – emigrantes dos anos 50 ou 60. O homem do balcão disse-me: “O bar é dos Amokranes, uma família cabila.” Confirmou-se o que já sabia, o meu herói Mouloudji é um parisiense comum.

Outra vez na estrada, pelo boulevard Voltaire – por isso entrei na Igreja Saint-Ambroise, memória esquecida – porque tinha um destino para dar coerência ao dia. O meu destino era a porta Dorée, uma das entradas orientais da cidade. Chuviscava e, apressado, só vislumbrei uma estátua gigante quando entrei no Museu da Emigração. Nas escadas li: “Sabia que em 1940 o Estado francês negou o pedido de naturaliza­ção a Pablo Picasso?” E cheguei à homenagem à emigração italiana em França – uma exposição tão oportuna. A emigração era a atual, desde o fim do séc. XIX, nada a ver com Júlio César a vencer Vercingetó­rix (acontecime­nto tão feliz para a Europa como eu a entendo).

Os levantamen­tos populares contra os piemontese­s que vinham tirar o pão da boca dos nossos franceses. A emigração “terrorista”, sim, porque foi um anarquista italiano que matou o presidente Carnot, em 1894 – vai daí, atacam-se os italianos das salinas de Marselha. Mas “les ritals” ou “les macaronis” não paravam de chegar. Na Praça Pigalle, o mercado das modelos, a italiana Adèle Abruzzesi oferece-se a Rodin e será, em pedra, a Petite Ève. E já chegou Modigliani. São 800 mil em 1930. Do pedreiro pobre, pai de Cavanna, o fundador de Charlie Hebdo, ao Sandro (com balde de cimento ao ombro, foto 1927) Pertini (presidente italiano, 1978). Quando um cardeal lombardo se torna João XXIII, o Paris-Match vai descobrir o seu primo Angelo, camponês e já francês. E o criador dos automóveis Simca, Enrico Pipozzi, já é Henri. E a canção francesa é Montand (nascido na Toscana) e Reggiani (de Reggio Emilia)... Ciao, como se diz em qualquer bistrot.

Saio, ainda chove, mas obrigo-me a ver a estátua entre os arbustos. É um homem, presumo, mas só lhe vejo o braço enorme que nada. E quer chegar. Não é esse o resumo do que acabo de visitar?

Em L’Autoportra­it, Mouloudji, o cabila de Paris, retrata-se assim: “Católico pela minha mãe/ Muçulmano pelo meu pai...” e por aí adiante. “Ateu, oh, graças a Deus...”

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