50 ANOS DO DISCO DOS BEATLES QUE HOJE SERIA IMPOSSÍVEL
Passa a 1 de junho meio século sobre a edição do disco que mais ajudou a mudar a face da música. Liverpool começa hoje a festejar
Em 2017, com o estado da indústria e com as novas regras do mercado editorial, um disco como Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, oitavo álbum de estúdio dos Beatles, nunca veria a luz do dia. Nem sequer conta o alinhamento cósmico que permitiu que John Lennon e Paul McCartney nascessem, com menos de dois anos de intervalo, na mesma cidade (Liverpool) se conhecessem cedo e mostrassem uma disponibilidade (temporária) para conciliar os respetivos egos e talentos numa só banda. Objetivamente, aquele que é por muitos considerado como o melhor disco da idade do rock, um precursor dos concept albums, seria inviável nos dias de hoje.
Antes de mais nada, há um elemento económico e logístico. Mesmo tratando-se dos Beatles, que significavam vendas milionárias, não parece admissível que hoje lhes fossem concedidos cinco meses de “instalação” num dos estúdios de gravação “topo de gama”, em Abbey Road, com horários bastante liberais e sem um regime que fizesse suar qualquer um dos Fab Four. Oficialmente, o primeiro dia de trabalho foi 24 de novembro de 1966; o disco foi dado como terminado a 21 de abril de 1967. O principal engenheiro de som, Geoff Emerick, contabiliza umas impressionantes 700 horas de trabalho efetivo. E não esconde uma memória de pouca disciplina: “Basta pensar nisto – para chegarem ao som que desejavam para a canção Getting Better, eles demoraram três semanas, exatamente o mesmo período de tempo que levámos para fazer todas as misturas em mono. E as estéreo foram feitas em três dias...”
Claro que houve contrapartidas a favor da editora EMI. A mais notória prende-se com duas canções inicialmente destinadas a Sgt. Pepper’s, mas que – adivinhando-se a demora na conclusão do álbum – foram “desviadas” para um single (com duplo lado A), lançado em fevereiro de 1967. Os temas eram Strawberry Fields Forever e Penny Lane, duas das grandes viagens dos Beatles ao seu próprio passado. No fim das contas, com McCartney a convocar uma orquestra de 40 músicos para ajudar em A Day In the Life, com novos instrumentos e tecnologias a serem testados quase todas as semanas, o custo total do álbum ficou nas 25 mil libras, quantia que agora soa irrisória mas que significava, nesse época, um enorme investimento. Claro que é inútil pensarmos nisso quando há meia dúzia de anos o disco levava 32 milhões de cópias vendidas e continuava a ser procurado. Agora, com edições especiais como a remisturada pelo filho de George Martin, Giles, os números vão voltar a mexer. O experimentar e a experiência Há, ainda assim, outro motivo ainda mais decisivo para que Sgt. Pepper’s assumisse o papel de marco histórico: a circunstância de John, Paul, George e Ringo terem decretado o abandono definitivo dos espetáculos. Descontentes com os concertos (“mais histeria do que música, até porque não conseguimos ouvir-nos uns aos outros”, sintetizaria John), os Beatles tinham-se despedido dos palcos em São Francisco, em agosto de 1966, pondo fim a algo que se aproxima de uma “digressão” ininterrupta – desde os tempos míticos dos shows em Hamburgo – e que somou mais de 1400 espetáculos.
No regresso da derradeira tournée norte-americana, George Harrison anunciou a saída do grupo e só aceitou permanecer quando, com Paul um pouco contrafeito, lhe foi garantido que tinham acabado as viagens e os espetáculos. Ora, como é sabido, a atual crise do mercado discográfico tornaria inviável (mesmo aos Beatles) esta opção pelos discos e em desfavor dos palcos. Hoje, a opção teria porventura de ser a oposta. Ou seja, toda a experimentação de que o álbum nos dá conta nunca teria acontecido se outros fossem os tempos.
Mas estávamos em 1967, num ano de graça como o rock conheceu poucos. Até à edição de Sgt. Pepper’s, a vantagem morava claramente do lado de lá do Atlântico, que já contabilizava as estreias dos Doors e de Jimi Hendrix, o excelente Surrealisic Pillow dos Jefferson Airplane, os distintos encontros dos Velvet Underground com Nico e de Frank Sinatra com António Carlos Jobim. Até o ano se finar, ainda houve direito aos primeiros dos Pink Floyd, dos Procol Harum e dos Bee Gees, a Goodbye and Hello, de Tim Buckley, a Days of Future Passed, dos Moody Blues, a Forever Changes, dos Love, a Their Satanic Majesties Request, dos Rolling Stones.
Nos estúdios de Abbey Road, os Beatles experimentam tudo, desde novas técnicas de gravação até fitas a andar para trás, passando por instrumentos novos (o mellotron) e ve-
Arranca hoje em Liverpool o festival Sgt. Pepper at 50, com a estreia de 13 obras baseadas nas 13 canções que compõem o disco Amanhã, nas salas de cinema inglesas, estreia-se o documentário It Was Fifty Years Ago Today! Sgt Pepper & Beyond
lhos mas invulgares (o cravo). Em Sgt. Pepper’s, sabendo que não teriam de reproduzir em palco as canções, os Beatles foram introduzindo mais e mais efeitos, abandonando até a ideia de que todos tinham de tocar em todas as faixas – Ringo Starr, por exemplo, fica de fora em She’s Leaving Home. Em sentido inverso, aqui se regista a última colaboração de escrita efetiva entre Lennon e McCartney, que escreveram a meias A Day In the Life. Daqui em diante, mesmo que surgissem duas assinaturas, só um tinha criado.
Decisivo para limar as arestas aos egos terá sido George Martin, o quinto Beatle e produtor. O estudioso Brian Southall, autor do livro Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band – The Album, The Beatles and TheWorld in 1967, recorda o episódio passado com George Harrison, que apareceu com uma canção para figurar no álbum. Chamava-se Only A Northern Song, mas Martin achava-a “fraca e deslocada”. A abordagem ao tema sofreu tantos adiamentos que Harrison percebeu, retirou-o e substituiu-o por Within You,Without You.
O resto é lenda: as canções que deixam entrever o consumo e o prazer das drogas (Lucy In The Sky With Diamonds ou A Day In The Life), a chegada do psicadelismo ao Reino Unido, a ideia de um álbum conceptual, em que surgem personagens ficcionadas (Billy Shears e a banda de Sgt. Pepper), o facto de pela primeira vez figurarem impressas as letras integrais das canções, a capa que envolveu um enorme trabalho de produção, como fotografias em tamanho natural, misturadas com figuras de cera. Também aqui os Beatles não tiveram uma vitória absoluta: se John Lennon tivesse levado avante a sua vontade, haveria mais três figuras icónicas na capa, com as imagens de Jesus Cristo, de Mahatma Gandhi e de Adolf Hitler. Salvo melhor opinião, há um que não faz lá falta nenhuma.