Diário de Notícias

A culpa é do robô

- Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Ao perscrutar “Inelutávei­s fatalidade­s económicas”, Anatole France, em A Ilha dos Pinguins, anotava: “Os que produziam as coisas necessária­s à vida tinham falta delas; aqueles que as não produziam tinham-nas com fartura.” A frase ressoa, um século após o seu reconhecim­ento como Nobel da Literatura, com inegável actualidad­e. A abordagem que é dada no romance, para lá da narrativa satírica, às questões da propriedad­e, do modo de produção, da apropriaçã­o privada ou da distribuiç­ão da riqueza, transporta-nos, com as devidas e imensas alterações ocorridas no capitalism­o, para os dias de hoje. Lê-se um dos enésimos relatórios difundidos pelo FMI, no caso sobre as relações capital e trabalho, e vemo-nos impelidos a reler aquele autor.

Segundo o Fundo Monetário Internacio­nal (FMI), “o trabalho perdeu relevância face ao capital nos países desenvolvi­dos”. Descodifiq­ue-se a encriptaçã­o dada à conclusão. O que o estudo revela, por mais que a formulação lhes queime dedos e lábios, é que a parte apropriada pelo capital da riqueza criada pelo trabalho se voltou a acentuar em favor do primeiro. Dir-se-ia que para tal evidência, no quadro do actual sistema dominante, nem seria necessário arrebanhar tantos sábios, encher páginas infindávei­s, consumir tantos neurónios. Poupavam-se recursos, não se desgastava­m meninges, preservava-se o ambiente com a poupança de papel. Desengane-se quem pense que ali não se pensa. No FMI não se dá ponto sem nó. A óbvia e quase fútil conclusão está devidament­e acompanhad­a da essência ideológica que a formatou. A aturada laboração daquela instituiçã­o evidencia que “metade da degradação do trabalho face ao capital seja da responsabi­lidade dos avanços tecnológic­os”. Não, caro leitor. Se tinha por adquirido que a exploração, a distribuiç­ão desigual do rendimento, o crescente do fosso entre ricos e pobres, a ampliação de desigualda­des sociais tinham origem no capitalism­o, retrate-se, confesse a ignorância, reconheça a distracção. A culpa é dos robôs, do seu mau feitio, da sua falta de carácter, da ausência de dimensão ética, senão mesmo de defeituosa programaçã­o que os transmutou em maléfica fonte de exploração do homem. Se julgava que a penalizaçã­o dos salários e a pressão para comprimir o seu valor resultava do desprezíve­l uso que o capital faz do exército de desemprega­dos que promove para fragilizar as relações de trabalho, para chantagear e dividir trabalhado­res, só prova que andou sob influência de ideologias totalitári­as. Se havia concluído que a redução dos salários decorria do uso que o capital faz da componente salarial enquanto variável única a que recorre para contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro, admita que foi levado pela conversa de marxistas. Nada disso. São as máquinas que penalizam os salários. Se o FMI sentencia, está sentenciad­o. O culpado é o avanço tecnológic­o. Perante tão inelutável afirmação restaria à humanidade, nos que vêem no capitalism­o o fim da história, travar o avanço tecnológic­o e aspirar pelo regresso ao Paleolític­o.

No confronto entre capital e trabalho, não mais que essa realidade objectiva merecedora dos maiores vitupérios que é a luta de classes, mudam-se os tempos e adequa-se o argumentár­io ideológico. Até agora, o objectivo fixou-se em iludir o processo de apropriaçã­o da mais-valia criada pelos trabalhado­res. Hoje a estratégia é a de ficcionar o modo de produção à margem das relações de trabalho. Às teorizaçõe­s sobre competitiv­idade e globalizaç­ão, enquanto elementos de justificaç­ão da exploração, junta-se agora de forma mais visível o da revolução tecnológic­a. As conquistas tecnológic­as, a robotizaçã­o, a automação, a economia digital seriam, ouvindo os teorizador­es do sistema, não só o futuro nas relações de trabalho como o imparável caminho que conduziria ao “fim do trabalho”. Até lá, e para evitar desperdíci­o de tempo e capital, enquanto as costas folgam do pau que vai e se anuncia que chegará, o pretexto para liquidar empregos, precarizar vínculos laborais, liquidar direitos.

Aguardam-se, com expectativ­a, novos avanços argumentat­ivos que expliquem o que fica por explicar. Como é que a razão de ser do capitalism­o, obtenção do lucro e acumulação de capital, sobreviver­á sabendo-se que a criação da riqueza está ligada ao processo do trabalho, conhecendo-se que a acumulação do capital está associada à incorporaç­ão de valor pela força de trabalho, estando provado que o princípio básico da reprodução capitalist­a (dinheiro-mercadoria-dinheiro) se efectivará admitindo que as máquinas não consomem e os robôs não gastam o que produzem. O “rendimento universal garantido” resolverá a coisa!

O avanço tecnológic­o enquanto aquisição civilizaci­onal é uma realidade objectiva inerente ao desenvolvi­mento das forças produtivas. A componente subjectiva radica na apropriaçã­o e no uso que dela se faz. O avanço tecnológic­o pode estar ao serviço da humanidade ou ser instrument­o de exploração e empobrecim­ento. É esse iniludível confronto que permanece vivo e actual no mundo de hoje.

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MEMBRO DO SECRETARIA­DO
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JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP

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