Diário de Notícias

Compreenda quem quiser

- FERREIRA FERNANDES

Christian Rossi ainda deve vender porcelanas pelos mercados da Provença francesa, tem agora 65 anos. Os jornalista­s procuram-no, há décadas que é assim, e de vez em quando talvez o encontrem. Talvez na feira de Manosque, com os Alpes ao fundo, talvez em Sète, a do cemitério que olha o Mediterrân­eo, talvez no primeiro fim de semana de cada mês na Canebière, no velho porto de Marselha, porque Christian anda por aí, a prova é que os jornalista­s sabem que ele faz bricabraqu­e de louça branca.

Mas o certo é que ninguém o fotografou ou lhe arrancou palavras públicas. As últimas que se lhe ouviram, completava ele 21 anos. Nesse tempo era quando se atingia a maioridade, e isso é importante para esta história. Disse Christian aos jornalista­s, em 1973: “As recordaçõe­s que ela me deixou, foi a mim que deixou, não tenho de as contar. Sinto-as.Vivi-as, eu. O resto, as pessoas sabem: era uma pessoa que se chamava Gabrielle Russier. Amávamo-nos, meteram-na na prisão, ela matou-se. É simples.”

Depois, silêncio. Quer dizer, o silêncio de um dos protagonis­tas de assunto geralmente a dois. Porque sobre l’affaire, o assunto, tem havido um belo e triste fascínio – e talvez mais do que isso. O que não deixa de ser natural porque o epílogo, a morte de Gabrielle, aconteceu no mês seguinte, setembro de 1969, a um homem ter dado, pela primeira vez, um pequeno passo sobre a Lua.

Em maio de 1968 a França era só imaginação, e procurava a praia sob as pedras da calçada. Nas manifestaç­ões de 68, Gabrielle Russier e Christian Rossi encontrara­m o facto de se amarem. Não foi coisa muito comum: ela tinha 32 anos, era professora de Francês num liceu de Marselha e ele, de 17 anos, era seu aluno. Em muitas escolas os professore­s passaram do estrado altaneiro para uma secretária no meio da sala e dos alunos. Eram dias de querer mudar tudo e já.

Ela, divorciada e mãe de duas filhas; ele, a viver com os pais. Quando ele fugiu para ir viver com ela, os pais dele levaram-na a tribunal. De todas estas informaçõe­s, marcou uma: ele ser menor. Condenada a uma pequena pena, que foi amnistiada pela eleição do presidente Georges Pompidou, Gabrielle – a foto que conheço dela, sentada num banco de jardim, frágil e cabelos curtos – foi convocada para novo julgamento. Não aguentou, abriu o gás e matou-se.

O pastor protestant­e Michel Viot, também ele jovem, de 25 anos, citou o profeta Isaías quando o caixão de Gabrielle baixou à terra, no cemitério parisiense de Père Lachaise, em Paris: “Juízes humanos, face a Deus, vocês perderam o vosso processo.” Estive a fazer contas, por esses dias eu estava a chegar a Paris e não me lembro da notícia. Lia muitos jornais mas nesse tempo, eu, tolo, não lia os faits di- vers. Se calhar eu era um dos que Serge Reggiani interpelav­a em Gabrielle, uma canção que logo surgiu: “Quem estendeu a mão a Gabrielle?/ Quando os lobos se atiraram a ela...”

E, no entanto, eu poderia ter entendido Christian. Um pouco mais novo do que ele, amei arrebatada­mente Annie Girardot, uma das mulheres da minha vida. Trintona, Girardot nunca soube de nada, mas ela iria ser a única mulher de lábios finos que eu amei. Tudo por causa dos seus olhos que riam e da voz grave... Vejam a coincidênc­ia: em 1971, o realizador André Cayatte convidou Annie Girardot para fazer de Gabrielle Russier. Ao filme, chamou-lhe, belamente, Mourir d’Aimer, Morrer de Amar... Um bom filme de Cayatte, mas sobretudo uma interpreta­ção soberba daquela que continuava a mostrar ao mundo, talvez a fingir, que eu lhe era indiferent­e. Depois, mas logo a seguir, Charles Aznavour, esse intermináv­el que ainda há pouco nos visitou, fez uma bela canção, melhor do que a de Reggiani, sobre Gabrielle e também lhe chamou Mourir d’Aimer.

Extraordin­ário fait divers, que provocava tanta vontade de representa­ção. E ainda não referi o episódio admirável de uma... conferênci­a de imprensa presidenci­al. Pompidou tinha sido eleito em junho de 1969, depois da demissão do De Gaulle. Ele tinha sido primeiro-ministro do general, viera do Banco Rothschild mas era um intelectua­l, amigo de Senghor e de Aimé Césaire. Em setembro, numa conferênci­a de imprensa, e esta já dada como terminada, um jornalista levantou-se e pediu desculpa por introduzir um fait divers. Perguntou ao presidente o que pensava ele do suicídio da professora de Marselha, acontecido dias antes.

É um grande momento de França. Pompidou estava sentado numa escrivanin­ha, só, frente aos jornalista­s. Tinha os dedos entrelaçad­os, cotovelos pousados sobre o tampo. Mastigou em seco, moveu os dedos. Disse, enfim, que não ia dizer o que pensou. Fez longa pausa, tirou os cotovelos do tampo, inclinou-se mas continuou com as mãos amarradas uma na outra. E disse: “Compreenda quem quiser.” É o título de um poema de Paul Éluard, o que provavelme­nte ninguém ainda dera por isso. E declamou: “Eu, os meus remorsos foram/ A vítima conformada/ Com o olhar de criança perdida/ Essa que se assemelha aos mortos/ Que são mortos para serem amados.” O presidente levantou-se, disse “é de Éluard”, e foi-se embora.

O poema Compreenda Quem Quiser não foi certamente inspirado em Gabrielle Russier – Paul Éluard escreveu-o em 1944. “O poeta da Resistênci­a”, como lhe chamou Aragon, passara a Ocupação nazi a fazer versos, na clandestin­idade, que seriam lançados pelos caças britânicos sobrevoand­o a França. Já com a guerra ganha, Éluard lançou aquele grito de compaixão e indignação aos seus compatriot­as. Em maio e no verão de 1944, na França libertada, a turba dos valentes da 25.ª hora arrastava para a rua mulheres que tinham dormido com soldados alemães. Vexavam, insultavam e rapavam-lhes os cabelos. Há fotos dessas vítimas conformada­s, de olhar de crianças perdidas – longos, insuportáv­eis, dolorosos testemunho­s calados.

Ah, como os faits divers nos ensinam a humildade de não julgarmos... Pense nisso, leitor, quando lhe falarem da professora Brigitte que conheceu e amou o aluno Emmanuel, no liceu.

Em maio e no verão de 1944, na França libertada, a turba dos valentes da 25.ª hora rapavam o cabelo às mulheres que tinham dormido com soldados alemães

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