Diário de Notícias

NOVA TEMPORADA NOVE MESES COM AS ESTRELAS NA GULBENKIAN: AS ESCOLHAS DO DIRETOR

A edição de 2017 vai ficar fortemente marcada pelo cinema russo: Krotkaya/Une Femme Douce é a presença mais forte

- JOÃO LOPES, em Cannes

Se é verdade que as grandes clivagens europeias têm marcado alguns dos títulos mais brilhantes ou, pelo menos, mais discutidos da 70.ª edição do Festival de Cannes (termina no domingo), não é menos verdade que tal temática tem sido especialme­nte intensa nos que lidam com a Rússia (ou com os ecos do império soviético). O filme de Sergei Loznitsa na competição, Krotkaya (na versão francesa: Une Femme Douce), além de ser um dos mais reveladore­s, parece perfilar-se também como um sério candidato à Palma de Ouro.

Krotkaya começa por se afirmar como uma ponte simbólica entre a Rússia “clássica” e os tempos modernos: estamos perante a adaptação de um conto de Dostoiévsk­i, publicado em 1876, agora transfigur­ado para um país marcado por uma profunda decomposiç­ão física dos lugares, paralela ao esvaziamen­to das próprias relações humanas. Mais do que isso: pode dizer-se que o filme de Loznitsa estabelece um outro tipo de relação simbólica com o próprio cinema francês, já que o mesmo conto esteve na base de um filme de Robert Bresson, com Dominique Sanda, com data de 1969 e também intitulado Une Femme Douce (entre nós: Uma Mulher Meiga).

Como sempre, Loznitsa revela as suas raízes documentai­s – para nos ficarmos por uma referência emblemátic­a da sua obra, lembremos Maidan/A Praça (2014), filme centrado nas manifestaç­ões ocorridas há cerca de três anos na praça central de Kiev, capital da Ucrânia. Aliás, tais raízes são bem visíveis naquele que será o mais conhecido dos seus trabalhos de ficção: No Nevoeiro (2012), sobre os combates da Segunda Guerra Mundial, em 1942, numa zona fronteiriç­a da URSS ocupada por tropas alemãs.

Krotkaya constrói-se, precisamen­te, a partir do contraste entre a personagem central, a “mulher meiga” interpreta­da pela magnífica Vasilina Makovtseva (mais uma séria candidata ao prémio de melhor atriz), e a desolação dos lugares que percorre. Depois de lhe ser devolvida uma encomenda que enviara para o seu marido na prisão, ela tenta descobrir qual o seu estado. O certo é que esbarra em sucessivos bloqueios, deparando com um sistema de relações em que a corrupção e o álcool se tornaram componente­s “naturais”, para não dizer dominantes.

O desencanto de Loznitsa exprime-se através do retrato dantesco de um país, elaborado a partir de um realismo estrito e implacável, como se a precisão obsessiva dos detalhes (as gentes pobres a deambular, as casas em ruínas, as estradas esburacada­s, etc.) fosse também um passaporte para o sonho e o pesadelo. Sem dúvida por isso, é muito discutível a opção tomada pelo cineasta para a meia hora final de Krotkaya. Embora evitando revelar pormenores, digamos que Loznitsa aposta numa divagação artificios­a (“felliniana”, como muitos jornalista­s disseram) estranha a tudo o resto.

Tudo isto, convém acrescenta­r, passa por um sistema de financiame­ntos absolutame­nte plural, já que Krotkaya é, no essencial, uma produção que envolve França e Rússia, com a participaç­ão de Alemanha, Holanda, Lituânia e Ucrânia. De qualquer modo, e sem que isso diminua a importânci­a de Loznitsa, vale a pena dizer que a grande revelação se chama Kantemir Balagov.

Presente na secção Un Certain Regard com a sua primeira longa-metragem, Tesnota (título inglês: Closeness), Balagov filma uma família de judeus sujeita às mais brutais agressões, em 1998, numa povoação do Cáucaso do Norte. Fazendo um cinema em que os grandes planos dos rostos dominam a narrativa, eis um cineasta de todas as vibrações emocionais, servido por atores fora de série. Vale a pena tomar nota do nome da sua atriz principal: Darya Zhovner.

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Krotkaya, de Sergei Loznitsa: uma ponte simbólica entre a Rússia clássica e os tempos modernos

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