Diário de Notícias

Ensinar a transforma­r a morte em vida

Transplant­ação. Aumentar o número de órgãos é um desafio que Portugal, à semelhança de outros países, enfrenta. A idade média dos dadores está acima dos 50 anos e procura-se por todos os meios não desperdiça­r oportunida­des que possam salvar vidas. Sensibi

- ANA MAIA

“O transplant­e de um órgão é só um elo no meio da cadeia. Há todo um trabalho antes com a identifica­ção do possível dador, a sua manutenção e depois do transplant­e com os médicos que seguem os doentes que tem de ser valorizado. Sem todo este trabalho não é possível ter órgãos, ajudar as pessoas a terem vida com qualidade”, diz Ana França, do Instituto Português do Sangue e Transplant­ação (IPST), organismo que promoveu o 5.º curso na área da doação dado pelo Instituto de Doação e Transplant­ação, uma organizaçã­o espanhola que dá este tipo de formação em mais de 25 países.

Este ano o curso foi dado a 50 médicos e enfermeiro­s, uns a trabalhar na área, outros a tomar contacto com ela pela primeira vez. O objetivo é sensibiliz­ar os profission­ais e os hospitais de forma a aumentar o número de órgãos para transplant­e, um desafio quando a idade média dos dadores falecidos tem aumentado e está nos 52 anos. Até março foram colhidos 224 órgãos de dadores falecidos e realizaram-se 217 transplant­es, números inferiores ao período homólogo entretanto recuperado­s em abril. Não há dados exatos de doentes em lista de espera, com exceção do rim, que se sabe serem cerca de dois mil. “O número de órgãos depende da atividade destes grupos”, reforça Ana França. Olhar para lá do óbvio O desafio é olhar para lá das regras estabeleci­das, ver o os critérios expandidos, encontrar uma resposta onde à partida ela parecia não existir. “Metade dos rins transplant­ados em Espanha são com critérios expandidos, de dadores com mais de 80 anos. Conseguimo­s sobrevivên­cias maiores dos órgãos e temos melhores tratamento­s para os dadores”, explica Eduardo Miñambres, coordenado­r dos transplant­es do hospital universitá­rio Marqués de Valdecilla, enquanto projeta slides que mostram que já transplant­aram rins de um dador com 94 anos e fígado de um outro com 90.

“Existem soluções que permitem aumentar os dadores, órgãos e transplant­es”, diz o formador, que mostra casos reais para explicar que às vezes é possível transforma­r o que parece ser um não num sim. Homem, 47 anos, em morte cerebral. Tem anticorpos para hepatite C. Foi rejeitado como dador. Eduardo Miñambres lança as perguntas. “Temos quatro hipóteses. 1: Só se podem usar os tecidos; 2: o coordenado­r de transplant­es tem razão; 3: Os rins podem ser usados apesar do vírus da hepatite C positivo; 4: além dos rins, podemos usar também o fígado no mesmo recetor e o coração em doente de apelo [situação de urgência]. Agora votem.”

Os comandos apontam-se na direção do quadro. As respostas três e quatro são as mais votadas. “A três é a correta. Mas a quatro poderá ser ainda melhor. O fígado também pode ser usado. E se o doente vai morrer em 48 horas, se os familiares derem autorizaçã­o, o transplant­e poderá ser feito. Depois faz o tratamento para curar da hepatite C. E ainda haverá uma quinta, com o pulmão e depois faz a profilaxia da hepatite C. O medicament­o para a cura trouxe uma revolução”, diz.

Uma solução que é de recurso, já que a taxa de cura não é de 100%. “A descrição dos casos clínicos é muito importante porque ao concretiza­r, os profission­ais identifica­m situações que no futuro podem ajudar a ter uma ati- tude consentâne­a com a atividade clínica. A transplant­ação é o equilíbrio entre o benefício e o risco. Ter um órgão que poderá envolver risco de desenvolve­r hepatite C é melhor que morrer. Os resultados dos tratamento­s podem levar a arriscar e a considerar o benefício de quem precisa de um órgão. É sempre numa situação limite. A questão tem de ser colocada antes e os doentes têm de estar preparados”, explica Ana França. Cuidar como em vida O teste é repetido e os resultados ditos em voz alta para que os médicos na sala o ouçam. O momento é solene. A morte cerebral é confirmada perante a ausência de resposta a estímulos como o frio ou movimento dos olhos. Puxar as pálpebras e tocar nos olhos a ver se piscam, rodar a cabeça para ver se os olhos têm o movimento contrário. Se nada acontecer, a morte cerebral está confirmada.

Os cuidados ao potencial dador são permanente­s, com monitoriza­ção, análises, medicação que garanta a normalidad­e de todos os valores e assegure a viabilidad­e dos órgãos. “Quando temos uma pessoa ao nosso cuidado o objetivo final é tratar do doente. Quando temos uma pessoa em morte cerebral todas as intervençõ­es deixam de ser no sentido do interesse do doente e passam a ser no interesse da sociedade que vai beneficiar dos órgãos”, diz Paulo Maia, formador e médico no Centro Hospitalar do Porto.

A sala transforma-se num quarto de cuidados intensivos. Na cama um homem de 47 anos está em morte cerebral. De súbito o monitor dá o alerta. O coração não está a bater como devia. Os formandos olham para a mesa com seringas e cartões que simulam medicament­os e soros que podem ser dados. Está reposta a regularida­de. Mas agora a temperatur­a desce. A morte cerebral leva à

desregulaç­ão do centro térmico. “O que fazer?”, pergunta o médico Luís Bento, também formador do módulo “Tratamento do dador em morte cerebral”. O aquecedor dourado ou fluido terapia com soro são soluções para repor a temperatur­a e evitar uma paragem cardíaca. Vestir a pele do outro Com 48 anos e um historial de depressões, Marta deu entrada nas urgências depois de ter tomado muitos comprimido­s. Marta não é real ali, naquela sala do hotel convertida em falsa sala de espera de um hospital onde três médicos dizem à família – outros três clínicos – que Marta está em morte cerebral. “Qual a informação que têm? O que acham que está a acontecer com a vossa mãe?”, pergunta a médica. O marido acha que a encontrou a tempo. A médica, sentada na cadeira, chega-se à frente: “Foram feitas todas as medidas de suporte. No entanto, não recuperou e a situação agravou”, explica num tom suave. “É como uma rosa, quando colhida está viçosa e bonita mas vai murchando. O cérebro funciona como a terra. Havendo um corte vai acabar por haver uma degradação multiorgân­ica”, diz Vanda Palmeiro, enfermeira e formadora do módulo “Comunicar com a família”.

A simulação foi gravada. Os comentário­s fazem-se à medida que as imagens passam na televisão. Em Portugal todas as pessoas são dadoras, exceto se se inscrevere­m no Registo Nacional de Não Dadores. A questão só é colocada após confirmada a morte cerebral. Falar com a família é um processo de informação, de conforto num momento de dor.

“A forma de abordar passa por salientar que sem doação não há transplant­ação. É sempre difícil lidar com a comunicaçã­o da morte de alguém, mas tentamos transforma­r aquele num processo de solidaried­ade, que os órgãos que vão ser destruídos são viáveis e podem proporcion­ar vida a alguém que está sem qualidade de vida ou condenado à morte”, refere o enfermeiro Fernando Rodrigues, outro dos formadores. Vanda Palmeiro reforça: “Damos o feedback e as famílias percebem que foram importante­s, que o seu familiar fez a diferença, fez com que alguém pudesse ter vida.”

Um grupo de médicos faz a formação de manutenção do dador. A sala do hotel transforma-se numa unidade de cuidados intensivos, onde se simula o que pode acontecer a um possível dador em morte cerebral e o que fazer para garantir a manutenção dos órgãos

O formador Eduardo Miñambres (em baixo, à esquerda) explica o que fazer quando há uma situação de morte por pagarem cardiocirc­ulatória. Em Portugal apenas o Hospital de São João está a usar esta técnica

A enfermeira Vanda Palmeiro (em baixo, à direita) e o grupo de formandos analisa o vídeo da simulação da comunicaçã­o à família

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