Edgar Pêra coloca os atores a viver um jogo de espelhos A partir do momento em que tenho a oportunidade de fazer um filme com um orçamento que me permite ter mais do que três ou quatro pessoas a meu lado, e eu a correr, isso implica e favorece um acréscim
Filmagens. Novo filme do realizador, Caminhos Magnéticos, inspira-se num conto de Branquinho da Fonseca publicado em 1938, agora transferido para o Portugal pós-25 de Abril
O realizador Edgar Pêra e o produtor Rodrigo Areias não são, decididamente, símbolos das tradicionais quezílias entre quem concebe artisticamente os filmes e quem gere os meios para a sua concretização. Daí que, em Guimarães, na rodagem do seu novo filme – Caminhos Magnéticos, segundo o conto homónimo de Branquinho da Fonseca – os dois se comportem quase como se fossem dois assistentes especiais de um coletivo em que cada membro sabe antecipar os problemas ou necessidades de qualquer outro.
Edgar Pêra define mesmo Rodrigo Areias como um “produtor à moda antiga”, expressão que aplica num sentido absolutamente positivo. Não se trata apenas de garantir o elenco, os cenários e o material técnico, mas de “pensar globalmente os filmes”.
Neste caso, o desafio nuclear era o de pensar, quer dizer, como filmar um conto publicado em 1938, centrado na figura de um argentino que vive de forma dramática, para não dizer rocambolesca, o casamento da filha, percorrendo os labirintos de um crescente desencanto existencial. Duas vias fundamentais vieram balizar tal desafio: primeiro, Edgar Pêra transferiu a história do seu Raymond para um Portugal pós-25 de Abril, pleno de contrastes e contradições; depois, a “reconstituição” desse tempo é, de facto, uma assumida fabricação, em cenários do mais puro artificialismo luminoso e cromático, devidamente registado pela direção fotográfica de Jorge Quintela.
Tudo se passa nas instalações da antiga fábrica ASA (desde 2012, quando Guimarães foi Capital Europeia da Cultura, transformada em centro de atividades artísticas e lúdicas). O casamento de Catarina com Damião (interpretados por Alba Baptista e Paulo Pires) é encenado num espaço a que apetece chamar virtual, quanto mais não seja porque a sua definição envolve imagens projetadas nas superfícies do próprio cenário. Por vezes, há mesmo situações em que tais projeções são obtidas por outras câmaras no momento da filmagem, criando um jogo de espelhos em que os atores são “forçados” a um inusitado confronto com as suas próprias imagens. Espantar o espectador No meio de tão festiva colisão de corpos e imagens, gestos físicos e cenários abstratos, como é que Edgar Pêra encara os particularismos de Branquinho da Fonseca? “Na verdade, quanto mais particular for, mais possibilidade tem de ser universal. É um pouco como o esperanto, a língua que todos, supostamente, deveriam falar. Acontece que ninguém fala esperanto e que, afinal, o português é mais universal que o esperanto.”
Nesta perspetiva, o realizador gosta de dizer que Caminhos Magnéticos será um capítulo mais numa trajetória criativa em que a total artificialização da imagem envolve também “toda uma pesquisa sobre o espectador”. Não por acaso, em 2016, lançou um filme com um título eloquente: O Espectador Espantado.
O que nos devolve às questões de produção. Edgar Pêra considera este projeto um dos poucos em que não está forçado a enfrentar sistematicamente as mais drásticas limitações orçamentais: “A partir do momento em que tenho a oportunidade de fazer um filme com um orçamento que me permite ter mais do que três ou quatro pessoas a meu lado, e eu a correr, isso implica e favorece um acréscimo de complexidade.” E sublinha: “Também tenho uma faceta de produtor e adapto-me bem às sugestões do Rodrigo,
porque sei que ele me vai arranjar o melhor para o filme”.
Para Rodrigo Areias, aliás reforçando alguns laços consolidados ao longo dos anos pela sua produtora (denominada Bando à Parte, em homenagem ao filme de Jean-Luc Godard, de 1964, com esse título), tudo isso passa por uma metódica internacionalização – no caso de Caminhos Magnéticos, para além de Portugal, os países envolvidos são a França, a Finlândia e o Brasil.
É francês o nome que interpreta Raymond: Dominique Pinon, veterano do teatro e do cinema, nosso conhecido sobretudo através dos filmes em que trabalhou sob a direção de Jean-Pierre Jeunet – incluindo, em 2001, o megassucesso O Fabuloso Destino de Amélie. A escolha de Pinon resultou, aliás, de uma intervenção muito direta de Rodrigo Areias: ao vê-lo numa curta-metragem, mandou de imediato uma mensagem a Edgar Pêra, dizendo que tinha a certeza que já sabia quem devia ser o intérprete de Raymond. O realizador concordou, reconhecendo que, na altura, à maneira de Marlon Brando em O Padrinho, “o Rodrigo fez-me uma oferta que eu não podia recusar...” Como dirigir atores? O cenário do casamento é vivido e filmado numa espécie de tenda, minimalista nos adereços, surreal nos efeitos: os atores podem até estar envolvidos num fumo mais ou menos bizarro, mas quando olhamos para os ecrãs dos técnicos, compreendemos que está a nascer um ambiente de envolvente assombramento.
Curiosamente, Edgar Pêra segue um método que, como o próprio reconhece “seria muito difícil com película” (pelos gastos que implicaria). Assim, cada take é assumido, não como um registo autónomo, mas um processo em movimento. De tal modo que, não poucas vezes, o realizador fala durante a filmagem: “Tudo se passa como se cada take pudesse conter várias tomadas de vista, já que não corto, prefiro falar e continuar, de modo a que o ator não perca a energia da personagem.”
A certa altura, Dominique Pinon e Paulo Pires aparecem de uma cortina negra que se abre, vislumbrando-se um clarão vermelho no fundo. Trata-se “apenas” de filmar o seu avanço, desaparecendo sucessivamente na zona lateral do enquadramento. A simplicidade do momento é tratada por Edgar Pêra como uma situação em aberto, alterando poses e detalhes: num misto de disciplina e empenho, os dois atores cumprem, afinal, um exercício musical de tema e variações.
Como é que tudo isso se vai refletir na montagem? Para Edgar Pêra, essa é uma questão central, já que a organização das imagens será também uma descoberta das possibilidades de conjugação do material filmado. E lembra o caso de O Barão (2011), também inspirado em Branquinho da Fonseca: “Fiz a montagem muito depressa, já que ao fim de seis meses já tinha a estrutura definida e apenas trabalhava no acerto de alguns pormenores.” A seu lado, Rodrigo Areias sorri com ironia e pergunta: “Muito depressa?” O realizador retribui com uma gargalhada e confirma: “Apenas seis meses.”