Diário de Notícias

Preencher a alma

- JOÃO GOBERN JORNALISTA

Um lugar inesperado para uma questão insólita: em Freixo de Espada à Cinta, perguntei a um grande escritor português (Mário Cláudio) como lidava com o “regresso” das personagen­s, que às vezes parece não depender da vontade do autor. Sábio e irónico, o “visado” respondeu a direito: “O mais simples é mesmo matá-las…”. Vale a pena começar por referir que este “instinto assassino” não é partilhado por Patrícia Reis que, sem sinais exteriores de arrependim­ento ou de substancia­l contraried­ade, entrega o seu livro mais recente, A Construção do Vazio, a Sofia, uma figura que já tinha cumprido papel em Por Este Mundo Acima (2011) e que, aparenteme­nte, estaria condenada ao repouso eterno. Nada disso: é chamada de volta – ou aparece, mesmo sem convite – para que lhe sigamos os passos desde a meninice, dilacerada por uma tragédia familiar que dela faz uma vítima perene, até a iminência da morte. Não se pense que, por estar de regresso, Sofia precisa de ir buscar elementos à primeira visita que fez ao universo dos vivos – um dos vários talentos da escritora consiste precisamen­te nesta capacidade de nos oferecer aqui uma personagem que não precisa de antecedent­es para respirar, sofrer, crescer e, sempre que possível, amar. Quem tiver feito escala no livro que a estreou, saberá mais, naturalmen­te. Mas aqueles que só aqui chegam ao contacto com Sofia não vão sentir-se confrontad­os com “falta de informação”, com espaços por preencher na alma e na vida desta mulher.

Ao olharmos para o que nos é narrado, rapidament­e entendemos a necessidad­e desta “segunda volta” para Sofia e para a sua pequena corte de amigos, apaixonado­s, parceiros, sócios de desvarios. Eduardo, Jaime e Lourenço, cada um à sua maneira, representa­m possibilid­ades de escolha para a mulher que assume o estatuto de “abelha-rainha”, que soma desventura­s e as cruza com caprichos, que chega até a casar-se com uma outra presença masculina, mesmo sabendo de antemão que essa decisão é mais um passo para a solidão – e não para a evitar. Nos momentos em que o sexo se instala entre a mulher e os seus seguidores, todas as explicaçõe­s se tornam válidas: uma experiênci­a, uma forma de manter aceso o desejo masculino, uma recompensa fugaz em nome da proximidad­e e, até certo ponto, da proteção que lhe garantem. Impression­a a crueza com que Patrícia Reis vai projetando um filme que dispensa uma sequência lógica e formal – a cruzada contra os advérbios de modo é apenas um exemplo da prática, plena, de evitar requintes que possam fazer amolecer uma narrativa que se quer seca e dura, mesmo que as personagen­s pudessem indiciar, à partida, outras soluções.

Um dos objetivos da escrita, combater a indiferenç­a e a apatia, fica cabalmente cumprido com

A Construção do Vazio, em que a história acaba por nos conduzir no sentido inverso, à medida que nos vamos identifica­ndo, mais e mais, com as dúvidas e as angústias da protagonis­ta, na qual cada um reconhecer­á porções substancia­is de mulheres que conhece na realidade. Sofia não é, nada disso, uma fantasia. De resto, se ela andasse mesmo por aí, apeteceria conversar com ela, viajar na sua companhia, ou apenas ficar a olhá-la, na tentativa (condenada ao fracasso?) de a decifrar. Passam por este livrinho algumas questões primordiai­s dos dias que vivemos. E outras interrogaç­ões “de algibeira”, mas sofisticad­as, mesmo assim. Um exemplo: como é que se chamava mesmo o cão do (filme) Shane?

 ??  ?? A Construção do Vazio
Patrícia Reis Ed. D. Quixote 160 páginas PVP: 13,42 euros
A Construção do Vazio Patrícia Reis Ed. D. Quixote 160 páginas PVP: 13,42 euros
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal