Madonnas e Josés
Por uma coincidência curiosa o Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa inaugurou uma exposição intitulada Madonna, nos mesmos dias em que a estrela da pop americana andava pela capital à procura de casa. A exposição, que traz obras dos Museus do Vaticano e pode (e deve!) ser visitada até 10 de setembro, foca-se obviamente noutra figura, mas o equívoco é menos improvável do que muitos talvez pensem.
Não é a primeira vez que me cabe explicar aos não italianos, sobretudo aos mais novos, que a palavra italiana madonna significa “senhora”. Num poema do século XIV, pode referir-se tanto à mulher amada como à mãe de Cristo, num texto do século XX, quase exclusivamente a Nossa Senhora e, mais raramente, a Louise Veronica Ciccone. Aí os adolescentes, que consideram história da música as cantigas da nossa adolescência, ligam as várias piscadelas de olho à religião na carreira da cantora (Like a virgin... Like a prayer… terços… até o namoro com um Jesus soa a marketing) e colhem essa carga iconoclasta que parecia evidente e não era.
A diva ítalo-americana dialogava assim com a figura feminina por excelência da cultura católica, mãe de Deus e de todas as batalhas culturais das mulheres, condenadas à eterna luta quer contra uma certa ideia de feminilidade virginal de Maria, quer contra a alternativa da menina fácil, sensível ao brilho de um diamante e brinquedo para rapazes (“boy toy”, lia-se no cinto que cingia o vestido de noiva, na capa do segundo álbum da cantora, pela qual as feministas não morriam de amores).
Ora, a exposição é uma boa oportunidade para rever não só a representação do feminino ao longo de muitos séculos, mas também a representação – entre o dito e o não dito – do masculino. Se a mulher é o lugar sagrado da maternidade, qual o lugar da paternidade? Em segundo plano, sem dúvida. Inúmeras são as pinturas em que o pai tem de espreitar sobre o ombro da mãe e pôr-se em bicos de pés para aparecer na foto. Podem-se citar exceções na vasta iconografia religiosa, pode-se evocar aquele exemplo (muito familiar aos lisboetas, em junho) de carinho masculino que é Santo António com o menino ao colo, mas a proxémica clássica da Sagrada Família, na ótima antologia do MNAA, fala claro: a mãe é o templo da ternura, o pai – acentuadamente velho, para que não surjam, no observador, ideias de relações carnais com a jovem esposa – quando não está a carpinteirar lá ao fundo, apanha fruta durante a fuga para o Egito, ou então, simplesmente, entrega-se ao tédio. Ghirlandaio retrata-o assim mesmo: a dormitar, com o braço apoiado na perna e a face na mão, alheio à troca de olhares doces entre mãe e filho.
Era tão bom que pudéssemos procriar de outra forma e que as mulheres não existissem! É o que o Jasão de Eurípides diz a Medeia, a um passo de se meter em sarilhos dos grandes. O mito de Maria, virgem e mãe, para lá de tudo o que se pode dizer sobre a repressão da mulher pelas ortodoxias religiosas, trai o auspício secreto oposto: que o elemento descartável da procriação seja precisamente o homem. Algo que hoje a ciência tornou realizável e que as novas famílias, de facto, realizam.
O alargamento dos direitos de parentalidade vieram baralhar os papéis, e ainda bem para todos. A heterossexualidade do casal sagrado é e será cada vez mais uma representação simbólica de dois princípios abstratos numa família toda por reinventar, em que os parceiros, independentemente do sexo (ou mesmo sem companheiros), aprendem a nada fácil tarefa de conciliar a carpintaria e a construção dos afetos, a proximidade do amor e a distância da lei, partilhando até, com o velho José, o assombro e o embaraço do homem perante o mistério da fonte da vida (como revelam as divergências, no debate sobre os temas éticos, acerca da “barriga de aluguer”, onde o que se afasta do retrato de família é o útero alugado). A parentalidade será cada vez mais uma escolha que, como o Anjo da Anunciação, transcende a biologia do casal e do acasalamento. Já Lacan o dizia: todo o pai é pai adotivo.
A parentalidade será cada vez mais uma escolha que, como o Anjo da Anunciação, transcende a biologia do casal e do acasalamento