Colaboração premiada
No contexto de uma sessão das Conferências do Estoril, que contou com a presença de conhecidas caras do mundo judiciário, como Baltasar Garzón, Antonio Di Pietro e Sérgio Moro, o juiz Carlos Alexandre, citando vários reputados juristas, introduziu no debate um conjunto de 13 propostas para reformar a justiça penal em Portugal, nomeadamente no combate à corrupção. Entre essas propostas, encontra-se a colaboração ou delação premiada, instituto que já tinha sido defendido em intervenções públicas anteriores. A reação mediática dos operadores judiciários e dos partidos políticos mostrou que, sendo um assunto que divide, não há qualquer reflexão ponderada sobre o mesmo. Na verdade, a primeira grande constatação é que as restantes 12 sugestões mencionadas pelo juiz Carlos Alexandre ficaram pelo caminho, enquanto a colaboração premiada, provavelmente porque já se encontrava em consideração no chamado grupo do Pacto da Justiça (um grupo de trabalho exclusivamente composto de operadores judiciários mas sem qualquer debate ideológico e político), foi a única a motivar atenção nos media.
Ora, na minha perspetiva, perdemos mais uma vez a oportunidade de fomentar um debate refletido e sério. Os partidos foram a completo reboque da discussão mediática. Sabemos que nenhum deles (PS, PSD, CDS, CDU, BE) tem um programa de reformas na área criminal há anos. Portanto, genericamente, mais uma vez, limitaram-se a intervenções desgarradas. Uns, “inequivocamente” a favor da colaboração premiada, ao mesmo tempo negam a reforma penal necessária (substituição do princípio da legalidade pelo princípio da oportunidade), numa contradição insanável, e fogem de explicar porque não legislaram o dito instituto quando tinham uma maioria parlamentar. Outros confundem a colaboração premiada no contexto da corrupção e do crime organizado com perseguições políticas (os chamados “bufos”), chegando mesmo a argumentar que num Estado de direito não pode existir delação premiada (consequentemente, além do Brasil e dos países anglo-saxónicos, Estados como Espanha, Itália, França, Alemanha, Holanda e quase toda Europa não são de direito).
As 13 propostas introduzidas pelo juiz Carlos Alexandre têm custos e benefícios. A própria colaboração premiada tem sérias desvantagens, é controversa no Brasil como nos Estados Unidos, requer uma profunda reforma do nosso direito penal e altera significativamente os equilíbrios e os incentivos estruturais (por exemplo, não é aceitável que o controlo do Ministério Público continue endogâmico como até aqui). Portanto, pensar-se-ia que haveria um debate profundo e não uma sequência de chavões, largamente mal fundamentados e sem qualquer consideração pelas diferentes consequências de determinado instituto. Infelizmente, para lá da pobreza dos partidos políticos nesta matéria (há muito que desistiram de qualquer discussão ideológica, deixando à tecnocracia jurídica o debate que deveria ser fundamentalmente político), encontramos três fraquezas importantes.
Primeiro, em 2010, existiu em sede parlamentar a comissão eventual para o acompanhamento político do fenómeno da corrupção e para a análise integrada de soluções com vista ao seu combate. Dessa comissão saíram mais de cem medidas. E houve lugar a um enorme pacote legislativo. Por sua vez, em 2015, voltou-se a legislar sobre o tema por unanimidade. Alguém foi avaliar o impacto desta legislação? Alguém explicou em 2015 porque tinha falhado o pacote de 2010? Estamos “inequivocamente” onde sempre estivemos – na mais profunda ignorância legislativa (por exemplo, o site do Conselho de Prevenção da Corrupção não apresenta um único trabalho de impacto legislativo).
Segundo, desde 2012, por imposição comunitária, existe o programa de clemência da Autoridade da Concorrência. Introduzido pela Lei 19/2012, era normal que os defensores da eficácia da colaboração premiada o usassem como exemplo no combate aos cartéis e aos conluios. Mas ninguém falou do tema. E porquê? Porque, publicamente, nada sabemos da sua eficácia. Mais, suspeitamos que a eficácia seja algo limitada, já que, precisamente, é um instituto estranho ao nosso ordenamento jurídico e malquerido pela tecnocracia jurídica portuguesa.
Finalmente, havendo unidades do Estado para tudo, em 2017, continuamos a não ter um Conselho de Estado à espanhola, uma Comissão Superior de Codificação à francesa ou uma Comissão Legislativa como os britânicos. Continuamos, pois, no modelo da legislação avulsa, desconexa, inconsistente. Certamente alguém deve gostar muito deste modelo, uma vez que não foi possível mudá-lo em 43 anos de democracia, apesar de produzir aquilo que é, consensualmente, legislação muito defeituosa.
A própria colaboração premiada tem sérias desvantagens, é controversa no Brasil como nos Estados Unidos, requer uma profunda reforma do nosso direito penal e altera significativamente os equilíbrios e os incentivos estruturais