NEGROS EM CARGOS DE TOPO?
AQUI A DESCOLONIZAÇÃO AINDA ESTÁ POR FAZER
uma professora negra na escola primária.” A frase de João é recebida com espanto. “Sério?”;“Nunca tive”;“Que sorte”. Estamos na sala da associação de estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde decorre o período de debate após uma conferência da socióloga Cristina Roldão, intitulada “Perpetuação do Colonialismo: Afrodescendentes e o Acesso ao Ensino”. A investigadora do ISCTE, ela própria afrodescendente, veio falar do que denomina de “racismo institucional” e cujas consequências no percurso dos alunos negros estudou com o colega Pedro Abrantes num trabalho pioneiro, apresentado há um ano. E no qual se conclui que a escola portuguesa discrimina os estudantes negros, mais vezes chumbados e encaminhados para cursos profissionais do que os colegas brancos, mesmo quando a origem socioeconómica é a mesma.
Esta primeira tentativa científica de explicar a rarefação de portugueses negros nas universidades terá surgido como resultado do trabalho de campo que é a história de vida da socióloga, nascida em 1980 no bairro social de Faceiras, em Tires. “Havia muitos negros na minha escola mas fui progredindo e foram desaparecendo. Da minha geração, daquele bairro, mais ninguém chegou à faculdade. Ficaram todos pelo 5.º, 6.º ano. E não era porque não fossem inteligentes.” Uma pausa breve sublinha a amargura. “As baixas expectativas são recebidas da sociedade. Desde o infantário sabia que havia racismo, porque as educadoras me tratavam de forma diferente. Tenho quase 40 anos e não vejo isso mudar. Afinal, Portugal deixou de ser uma potência colonial ontem. Não conseguimos apagar isso de um momento para o outro. Mas é preciso olhar para o problema e enfrentá-lo.” “Há quanto tempo estás cá?” Na assistência, entre 16 pessoas, seis são negras, todas universitárias: foram elas que se manifestaram face ao que João, 18 anos, aluno da licenciatura de Línguas, Literaturas e Culturas e também negro, disse. Afinal, a conferen“Tive
cista acabara de frisar que é preciso formar os docentes para não excluírem. E João prossegue: “Essa professora, que era a única negra na minha escola, teve um papel muito importante na minha vida. Dizia-me que havia muitos negros em África que não tinham as mesmas oportunidades que eu. Que tinha de aproveitar.”
João, de apelido Mendes, é do Seixal. A mãe e o pai nasceram na Guiné. Vive com a mãe, ajudante de cozinha, e com a irmã, um ano mais velha. O pai, que era ajudante de pedreiro e tirou um curso de Direito depois de adulto, regressou ao país de origem. “Acho que aquela professora foi tão importante por constituir um incentivo constante”, explica ao DN. “Havia um elo, uma ligação. Não vou dizer que os alunos negros devem ser ensinados por professores negros, isso seria um disparate. Mas não posso negar que entre os muitos professores não negros que tive vi alguns exibir um viés. E fui avançando na escola e, como a Cristina, vendo cada vez menos negros à minha volta. Podemos achar, claro, que é por conformismo, desistência, falta de esforço. Mas muitos dos que nem sequer tentam foram atingidos pelo racismo institucional. Porque não é uma questão de chegar ao 10.º ano e desistir – a vontade foi cortada antes. A falta de ambição, a ausência de amor-próprio, são construídas. Numa fase de construção de carácter, a criança sente que não acreditam nela, que não se puxa por ela. Convence-se de que não merece. Interioriza uma imagem que não é boa.”
A imagem de não pertencer, de não conseguir, de ter tudo contra si, sem referências positivas, sem modelos que permitam acreditar que ser negro não é uma condenação a trabalhar nas obras ou limpar casas ou – se se tiver sorte na lotaria genética e no talento – a jogar futebol, fazer atletismo, ser músico de hip-hop ou kizomba. Para não falar do estigma da delinquência. Daí que uma professora negra, ou outra figura de referência que permita alargar e concretizar o horizonte de ambição, possa fazer tanta diferença.
Não terá sido o caso com Sofia Iala Rodrigues, 23 anos, estudante de mestrado de Antropologia e Culturas Visuais, outra das negras que veio ouvir a conferência. Filha de dois angolanos – ela contabilista, ele reformado de um cargo administrativo na Tudor –é a primeira pessoa da família com curso superior e atribui o feito, em grande parte, aos pais. “Fiz o ensino básico na Damaia, numa escola complicada. Depois mudámo-nos para o Barreiro. Quando entrei no sexto ano só havia outra rapariga negra na turma. Mas os meus pais tinham um controlo muito grande sobre o meu percurso, puxavam muito por mim e tinham muita atenção a pequenas agressões que foram acontecendo. E acho que acabei por ter sorte com os professores.” Aliás, o episódio de racismo mais explícito que refere associado à escola é vindo dos colegas, tendo-a a si e uma professora como alvo. “Ela era mestiça e acho que sofreu um bocado. Quando estávamos a dar a origem da humanidade e havia as imagens dos antepassados do homem eles diziam que éramos nós, que éramos parecidas com os macacos.” A professora, conta Sofia, não reagia. “Creio que não sabia como reagir. Eu também não.” Suspira. “Foi crescendo em mim a noção de que nasci cá e me considero portuguesa mas as outras pessoas – as pessoas brancas – não me veem como fazendo parte do país.”
Em criança, ouviu muitas vezes o clássico “preta vai para a tua terra”. E recentemente, conta, num projeto de voluntariado com crianças “elas perguntaram: ‘Há quanto tempo estás cá?’ E: ‘Falas tão bem português’. Desde tão pequenos têm esta atitude. Ainda temos de progredir muito em Portugal. Mas espero que esta iniciativa da ONU, da década dos afrodescendentes, seja o princípio de uma nova era.” “Um negro nunca será português” Será? João só soube da proclamação da década, iniciada em janeiro de 2015, há seis meses. “A maioria das pessoas não sabe. Louvo a iniciativa, claro, mas acho que está ainda um pouco verde.” Na verdade, a nível institucional e mediático nada se passa; foi na movimentação cívica que as coisas mexeram. Criaram-se novas associações, entre as quais a Djass, Associação dos Afrodescendentes, e uma plataforma que reúne todas, a qual em dezembro enviou uma carta aberta à ONU, protestando contra o racismo institucional do Estado português. E, a partir de um discurso pouco rigoroso e desculpabilizador do PR sobre a escravatura, no antigo entreposto negreiro de Gorée (Senegal), iniciou-se nos jornais um debate sobre o colonialismo português e o que dele subsiste na sociedade portuguesa.
Mas, ironia, a maioria dos protagonistas – quase todos académicos – do debate que decorre nos jornais são brancos. De novo a invisibilidade: o que explica que, 42 anos após a descolonização, continue a viver-se em Portugal nesta espécie de apartheid informal e haja tão pouca discussão, protesto e reivindicação em relação a isso? Como se explica que o Estado possa dar-se ao luxo de, num relatório sobre discriminação enviado à ONU (ver texto nestas páginas) no primeiro ano da década dos afrodescendentes, elencar uma série de políticas dirigidas a imigrantes e ciganos e, quanto aos negros, declarar que estes beneficiam de uma “abordagem holística”, ou seja, não existem políticas específicas para eles?
João reflete. “Na minha opinião a razão pela qual estamos tão atrasados em meter mais o pé e defendermos os nossos direitos é a forma como o nosso país encara a situação. Faz-nos viver numa realidade dúbia, em que parece que não existe o problema enquanto sofremos as consequências. Tendemos a vê-lo como individual em vez de estrutural.” Mas, crê, isso vai mudar. “Só agora é que estamos a ter este pico de negros filhos de pessoas que já nasceram cá, e que estão a sentir em pleno o conflito do que é ser português e negro. Porque quando éramos miúdos sentíamo-nos portugueses, mas à medida que crescemos vemos que não é assim tão simples. Estamos a apalpar terreno.”
Não, não é simples. Qual é a imagem que o negro tem de si próprio numa sociedade maioritariamente não negra, pergunta Carmelino Cassessa, 32 anos, outro dos presentes na conferência de Cristina Roldão. E conta, à guisa de ilustração, uma história passada numa turma de que fazia parte. “A professora perguntou: se um negro se naturalizar português será português? Ficou tudo calado. E de repente houve uma corajosa, branca, que disse ‘Não, nunca será português.” A brutalidade caricatural da sentença faz soar risos na sala. “Ao menos teve a coragem de dizer o que a maioria pensa”, conclui Carmelino.
A coragem do racismo: Carlos Pereira, que se assume como “o único humorista negro português”, também fala dela. “Acho que os portugueses são racistas mas é um racismo mais subtil que o de há uns anos atrás. Faço piadas com o racismo e a audiência ri, nem que seja para disfarçar o desconforto. Mas já me sucedeu estar uma família toda a rir e o pai muito sisudo. Fui perguntar-lhe o que se passava e ele respondeu: ‘É que não acho piada a pretos.’ Foi estranho, não estava à espera de ouvir aquilo. Mas gabo-lhe a coragem de dizê-lo à frente de tanta gente.”
Coragem ou ódio? Carlos hesita. “Há uma coisa um bocado ingrata. Vivo cá há dez anos [nasceu em São Tomé, onde ficou com os avós até aos 15, quando veio viver com a mãe, médica]e sinto muito pouco racismo. Se calhar porque sou bonito, simpático. As pessoas dizem-me muito ‘tu não pareces
“Acreditei numa sociedade pós-racial, mas continuo a ser alvo das observações que ouvia em criança. Nada mudou, ou mudou muito pouco”