Diário de Notícias

Desigualda­de, voz, saída e lealdade

- POR MARIA DE LURDES RODRIGUES

1O tema da desigualda­de económica tem estado na agenda de muitos debates políticos e académicos, nomeadamen­te após a publicação do livro de Thomas Piketty sobre o capital no século XXI (2013). O seu principal contributo consistiu em, através da análise de séries longas, demonstrar que no capitalism­o a tendência para o cresciment­o das desigualda­des económicas é endémica. A retoma dessa tendência nas últimas décadas não seria por isso conjuntura­l, podendo a Europa e os EUA estar a caminho de níveis de desigualda­de próximos dos registados no século XIX, o que poria em causa a sobrevivên­cia dos regimes democrátic­os. Para contrariar essa tendência, Piketty defende, sobretudo, a necessidad­e de novas políticas fiscais, preferenci­almente de âmbito global.

2O tema volta agora à agenda com a publicação do livro After Piketty. The Agenda for Economics and Inequality. Nesta obra, mais de duas dezenas de autores, de várias ciências sociais, da economia à história, sociologia ou ciência política, discutem as teses de Piketty. Recupero hoje apenas um dos textos incluídos no livro, da autoria de Elisabeth Jacobs. A autora toma de empréstimo o conhecido modelo proposto por Albert Hirschman sobre as relações entre voz, saída e lealdade e analisa as relações entre desigualda­de económica e desigualda­de política. As desigualda­des económicas, sustenta, podem ser ampliadas e tornadas duradouras quando combinadas com desigualda­des políticas, numa dinâmica cumulativa de efeitos negativos. Ou contrariad­as, quando as políticas rompem aquelas combinaçõe­s negativas. Em particular, políticas públicas nos domínios da saúde e da educação, universais e gratuitas, podem fazer toda a diferença, gerando efeitos de retroação positivos.

3Elisabeth Jacobs argumenta que as desigualda­des económicas tendem a estar associadas a desigualda­des na capacidade de expressão dos interesses e de organizaçã­o da ação coletiva com o objetivo de afirmar esses interesses (voz). Não será por acaso, argumenta, que há uma correlação tão forte entre a estagnação dos salários nominais nos setores económicos menos qualificad­os e a redução da taxa de sindicaliz­ação nesses mesmos setores. Menos voz dos trabalhado­res contrasta com mais voz e mais lobismo dos mais ricos. Estes, ganhando mais poder de influência, conseguem, por exemplo, pressionar no sentido da redução da despesa pública ao mesmo tempo que, porque têm os recursos económicos para tal, abandonam os sistemas públicos (saída). Essa saída, acompanhad­a pela redução da despesa pública, tem como efeito uma degradação da qualidade dos bens públicos, sem que haja voz efetiva que a contrarie. Degradação que incentiva o movimento de saída dos mais ricos do público para o privado, numa espiral negativa que acentua ainda mais a degradação do serviço público. Não o usando, quem tem mais rendimento­s sente-se mais desobrigad­o de o financiar, pressionan­do novamente no sentido da descida da despesa pública social e, quebrada a lealdade com a comunidade, usando os fluxos globais de capital para reduzir a sua carga fiscal.

4Vejamos o caso do Serviço Nacional de Saúde. Quando o serviço público de saúde é universal e gratuito para todos inclui, entre os seus beneficiár­ios, as classes médias e altas, as quais, tendo “voz”, podem com mais eficácia reclamar melhorias de qualidade do serviço prestado. Em tempos de redução da despesa pública social, a “saída” ou afastament­o dos que têm voz e, cumulativa­mente, outros recursos, designadam­ente financeiro­s, em nome da liberdade de escolha, contribui para a degradação dos serviços públicos de saúde, o que gera inevitavel­mente mais saídas. Os que saem, deixando de ser beneficiár­ios, perguntam-se porque devem contribuir, designadam­ente através dos impostos, para a manutenção do sistema. Pressionam por isso para a redução da despesa pública e para a afetação de parte deste ao financiame­nto da sua saída, por exemplo, através do financiame­nto da saúde convencion­ada. A desigualda­de económica transforma-se em segregação económica, com cada vez menos partilha de espaços comuns e a consequent­e redução das solidaried­ades que sustentam os deveres de lealdade para com a comunidade em geral.

5O debate sobre medidas alternativ­as de políticas públicas é muitas vezes reduzido ao seu impacto económico ou às suas tecnicidad­es, ocultando-se, por exemplo, o seu impacto nas desigualda­des económicas e políticas. São inúmeros os exemplos de medidas de políticas discutidas no espaço público como meras opções técnicas, avaliadas apenas pelo seu impacto económico, que seria interessan­te submeter a uma análise do impacto que podem ter nas desigualda­des económicas e políticas, a partir dos três conceitos propostos por Hirschman. Medidas como, por exemplo, o cheque-ensino e o cheque-dentista, a contratual­ização com privados de serviços públicos, como acontece muito no caso da saúde, as propinas no ensino superior, a gratuitida­de dos manuais escolares, a requalific­ação das escolas e hospitais ou as modalidade da contrataçã­o coletiva.

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As teses do economista francês Thomas Piketty (na foto) estão agora a ser discutidas por dezenas de autores de várias ciências sociais
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