A segunda morte de Burke e Madisson
Ademocracia representativa contemporânea foi teorizada com profundidade na segunda metade do século XVIII por pensadores que eram também homens de ação. Os dois mais importantes são o irlandês Edmund Burke (1729-1797) e o quarto presidente dos EUA, James Madison (1751-1836). Duas personalidades que devotaram a sua vida a um trabalho intelectual inovador, sempre combinado com a resolução de problemas políticos concretos. O regime representativo funda-se na soberania popular, como os regimes democráticos antigos. Contudo, existem diferenças fundamentais. No regime representativo de Burke e Madison (que é o nosso) existe uma clara separação de poderes. A prática ateniense de juntar a multidão de cidadãos na ágora para usar cacos de bilha como boletins de voto para retirar os direitos de cidadania a figuras caídas em desgraça (ostracismo) nunca seria possível no novo regime em que os três poderes (legislativo, executivo e judicial), embora gerados da mesma fonte da vontade popular, são zelosos de uma independência garantida pela Lei Fundamental. Mas não menos importante é o facto de que o povo não governa diretamente, mas apenas através de representantes eleitos. Ao assistirmos ao processo suicidário em que o Partido Conservador está a fazer mergulhar o Reino Unido, ou quando escutamos os apelos demagógicos à figura mítica de um “povo americano” do presidente Trump nos seus solilóquios eletrónicos ou em comícios encenados, é impossível não perceber que uma das razões que estão a levar à desagregação populista e potencialmente cesarista do Ocidente é a falta de competência teórica e técnica, mas sobretudo o défice de sentido comum moral de figuras que se atreveram a alcandorar-se e a arrastar-se em lugares muito maiores do que elas.
A história trabalha muitas vezes num registo amargamente irónico. Os descendentes dos fundadores da democracia são também os herdeiros dos dois últimos impérios marítimos globais (e historicamente os maiores aliados de Portugal). O modo como Trump pensa ser possível encontrar um sítio seguro para os EUA, criando um cordão sanitário e protecionista em relação ao resto do mundo, é um sinal de demência irremediável. A mesquinha atitude de David Cameron, lançando um tema como o do brexit – com um potencial de risco estratégico incalculável – para a esfera referendária apenas para ganhar uma fútil vantagem no seu carreirismo partidário, encontrou no malabarismo eleitoral falhado de May o seu sucedâneo coerente. A democracia representativa assenta na soberania popular, manifestada através de eleições regulares e extraordinárias. Contudo, o recurso frequente ao instituto do referendo, como ocorreu no Reino Unido, ou a tentativa de neutralizar os limites constitucionais, como ocorre na visão trumpiana dos EUA, são um sinal da profunda doença do outro pilar que suporta a democracia representativa: a competência e o sentido de decência dos representantes eleitos (não importa se motivado pela consciência ética ou pela “vergonha na cara”). A deriva atual dentro do mundo anglo-saxónico, causada por políticos que escondem a sua preguiça e impreparação atrás de constantes apelos ao povo, mostra que a essência da democracia representativa é hoje ameaçada por aqueles que são eleitos não para abdicar da sua responsabilidade mas para estudar, debater e deliberar em nome do povo. Os grandes perturbadores populistas não são uma ameaça para amanhã. Eles já governam em Londres e em Washington.