Diário de Notícias

Um Rio do avesso

- JOÃO ALMEIDA MOREIRA JORNALISTA — em São Paulo

Dois episódios passados no intervalo de uma semana resumem o Brasil ou, pelo menos, o Rio de Janeiro. O primeiro foi protagoniz­ado por um segurança anónimo de uma loja. O segundo por um famoso jogador de futebol. Luiz Ricardo Alves, cujo nome de guerra nos relvados é Sassá, ou Sassalotel­li, numa alusão ao também negro, talentoso e controvers­o Balotelli, antigo internacio­nal italiano, foi cercado por 20 coléricos torcedores do seu clube, o popular Botafogo, quando estacionou o carro em frente ao Estádio Nilton Santos.

Os adeptos botafoguen­ses já andavam há meses de saco cheio de Sassá. Primeiro, porque sem motivo aparente ele se envolveu numa briga com um colega de equipa em pleno jogo. Depois, porque era visto com frequência a curtir a madrugada carioca. Numa das noitadas, bateu com o carro. Discreto até há um ano, passou a notícia na imprensa cor-de-rosa por causa de problemas dentro do casamento e por namoros fora dele. E um dia fez estremecer as redes sociais ao deixar-se fotografar, de tronco nu, com molhos de notas nas mãos na pose tra- dicional dos traficante­s dos morros cariocas.

Mas o que levou os torcedores a confrontar Sassá naquele dia foi outro caso: corriam em grupos de WhatsApp mensagens atribuídas ao jogador de 23 anos em que desdenhava do próprio clube e – ofensa suprema – elogiava o rival Flamengo.

Diz quem viu – o grupo de jornalista­s que segue o dia-a-dia do clube alvinegro – que a situação ficou tensa. Tensíssima. Porque no Brasil violência não é só os ajustes de contas sangrentos, os sequestros-relâmpago ou os assaltos agressivos (os chamados crimes por motivo fútil, como uma discussão no trânsito, uma briga de boteco, ou, no caso, a raiva de adeptos fanáticos para com um ponta-de-lança) contribuem para 80% das mortes, nalguns dos 26 estados brasileiro­s. Parte do povo brasileiro passa da sua, felizmente, tradiciona­l doçura para a mais pura e dura ignorância num fósforo.

Sabendo disso, Sassá explicou-se imediatame­nte. E, para espanto dos tais jornalista­s, no instante seguinte já distribuía abraços e correspond­ia como podia a uma fila para selfies. Mas o que fez os adeptos fanáticos renderem-se a Sassalotel­li de um momento para o outro? Argumentou o jogador que aquela mensagem não podia ser sua porque ele jamais acertaria uma “crase” – a contração de duas vogais. E, de facto, no texto havia um impecável “à” lá pelo meio. No Brasil, por causa do sotaque que abre as vogais, muito boa gente, até nos meios académicos, sente dificuldad­e em distinguir o artigo definido “a” da contração “à”. Entre essa gente, claro, está Sassá e os que o intimidava­m, agora rendidos ao álibi do jogador. Uma semana depois, a meia hora de carro do Estádio Nilton Santos, cerca de 40 criminosos do morro da Providênci­a assaltaram pela madrugada a Senador Pompeu, uma rua comercial, no centro do Rio. Roubaram tudo, em retaliação contra os comerciant­es locais que não lhes querem pagar taxa em troco de proteção. Uma patrulha da polícia militar foi chamada ao local mas, ao verificar que os ladrões tinham espingarda­s e metralhado­ras, logo, muito mais armamento do que os próprios agentes, bateu em retirada e deixou-os a encher os bolsos sem serem incomodado­s por duas horas.

O vigia de uma das lojas assaltadas – o anónimo do tal segundo episódio – chegou por aquela altura ao local para começar a trabalhar. Negro, armado e sozinho, ao ver o arrastão, tal como Sassá, pensou rápido: misturou-se no gangue, fingiu-se de ladrão e acabou a assaltar a própria mercearia que lhe competia vigiar. Quando o patrão chegou, o vigia explicou a situação, pediu-lhe desculpas e devolveu os pacotes de bolachas roubados no meio da encenação. Carioca experiente, o dono da mercearia não só o entendeu como lhe elogiou presença de espírito.

Porque noutros pontos do globo há assaltante­s que se camuflam de polícias. E jogadores de futebol que tentam passar-se por mais espertos do que são. No Rio, os agentes de segurança disfarçam-se de ladrões e os futebolist­as escudam-se na própria ignorância para sobreviver­em.

No Rio, os agentes de segurança disfarçam-se de ladrões e os futebolist­as escudam-se na própria ignorância para sobreviver­em

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