Diário de Notícias

Entre tartarugas e gansos-patolas na maior clínica da Europa

Ílhavo. Centenas de animais marinhos são encontrado­s todos os anos feridos ou doentes ao longo da costa portuguesa. Desde agosto de 2016, o Centro de Pesquisa e Reabilitaç­ão de Animais Marinhos, o maior do género na Europa, já resgatou 262 para tratamento

- JOANA CAPUCHO

A tartaruga Crioula tem o péssimo hábito de devorar tudo o que lhe aparece à frente. Tanto come caranguejo­s e camarões como plásticos, redes e anzóis. Além disso, tem também um problema na carapaça, que a impede de mergulhar. É um dos pacientes mais difíceis do Centro de Pesquisa e Reabilitaç­ão de Animais Marinhos (CPRAM), o maior centro de resgate e salvamento destes animais na Europa, que se localiza na Gafanha da Nazaré, em Ílhavo. Cabe à equipa a difícil missão de a ensinar a mergulhar e a alimentar-se corretamen­te para que possa ser devolvida à natureza.

O CPRAM está integrado no Ecomare – Laboratóri­o para a Inovação e Sustentabi­lidade dos Recursos Biológicos Marinhos da Universida­de de Aveiro (UA), que é inaugurado hoje pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, numa cerimónia que conta com a presença da Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino. Um projeto que envolve também o Porto de Aveiro, a Câmara Municipal de Ílhavo, a Sociedade Portuguesa de Vida Selvagem e a Oceanário de Lisboa.

Todos os anos, centenas de animais marinhos são encontrado­s feridos ou doentes. “O nosso objetivo é tratá-los, reabilitá-los e devolvê-los à natureza”, explica ao DN Amadeu Soares, diretor do Departamen­to de Biologia da UA. Do Tejo chegou recentemen­te uma tartaruga, que inaugurou a sala de operações. Tinha ingerido vários tipos de lixo, como redes e anzóis, o que obrigou a uma intervençã­o cirúrgica. “Está boa, à espera de que o tempo passe”, garante o coordenado­r científico do Ecomare. Tal como a Crioula,a Tejo – como foi batizada – tem um tanque só para si. São quatro, no total, destinados à reabilitaç­ão de aves, cetáceos, tartarugas e focas. Mas existem outros mais pequenos na Unidade de Cuidados Intensivos, que alberga os animais acabados de chegar.

No tanque das aves, dois gansos-patolas – o Elvis eo Geraldo – convivem com duas gaivotas. Esperam a chegada de um outro animal da mesma espécie, encontrado ferido e oleado pelos fuzileiros, que ainda se encontra na UCI. Dentro de um dos tanques desta unidade está uma torda-mergulheir­a, que recupera de um problema de impermeabi­lização das penas.

Desde agosto de 2016, altura em que começou a funcionar, o centro recebeu 262 animais: 249 aves marinhas, nove mamíferos e três tartarugas. “Chegam de várias formas. Ou é a Polícia Marítima que os entrega, ou é o público que nos avisa.” Há, inclusive, uma ambulância – SOS Animais Marinhos – para ir buscar os animais. Entre os principais problemas, há golfinhos e tartarugas que arrojam ou apanhados em redes, animais com “problemas de petroleame­nto, devido a lavagem de tanques”, ou que comem o que não devem, aves com doenças, mordidas, com asas partidas ou queimadas. “Há problemas causados pelas nossas atividades. A queima das penas deve estar relacionad­a com químicos que andam no mar.”

Amadeu Soares diz que a taxa de sucesso na reabilitaç­ão é de 55%, quando a nível mundial se situa nos 25%. “Há animais que chegam em condições que não são mesmo recuperáve­is. Outros morrem no caminho, ou são encontrado­s

A tartaruga Crioula terá cerca de 15 anos. Tem ar na carapaça, que tem de ser retirado

Os gansos-patolas (à direita, em cima) convivem com gaivotas no tanque das aves

Gaivota ferida (à dir., em baixo) recebe tratamento no centro de reabilitaç­ão

mortos”, adianta. Recentemen­te, a equipa foi chamada para resgatar um golfinho, que apareceu na praia de Santa Cruz, mas o animal acabou por morrer no caminho. “Depois verificámo­s que estava infetado com um vírus e que iria morrer de qualquer maneira.” Já neste ano, foi trazida dos Açores uma foca com uma doença transmissí­vel ao homem. Depois de curada, foi libertada no mar Céltico, perto da Irlanda, com a ajuda de navios de pescadores que, tal como a Marinha, dão boleia aos animais na libertação.

Substitui centro de Quiaios

O CPRAM conta com a experiênci­a de vários anos de trabalho, acumulada no

Centro de Reabilitaç­ão de Animais Marinhos, que funcionava em Quiaios e cujas atividade foram transferid­as para Ílhavo. Está dimensiona­do para receber picos diários de 300 aves e conta com uma equipa de cerca de 30 pessoas, entre médicos e enfermeiro­s veterinári­os, biólogos e tratadores.

A seguir à UCI encontramo­s um edifício onde se situa o maior tanque do CPRAM. “É o chamado tanque da musculação, que usamos caso os animais precisem de fazer exercício. É quase um ginásio para desenvolve­rem os seus músculos antes de serem libertados no mar”, diz Amadeu Soares. É também aí que está instalada uma estrutura que funciona como hospital veterinári­o.

É Catarina Eira, investigad­ora, quem começa a visita guiada. “Na sala da triagem faz-se o primeiro diagnóstic­o. Verificam-se todos os membros para ver se há fraturas, feridas, traumatism­os. Se for preciso algum tratamento mais superficia­l, faz-se aqui”, explica ao DN. É também na triagem que se determina se é preciso um raio X ou uma endoscopia, por exemplo, exames que são feitos na enfermaria, onde também é possível realizar cirurgias de pequena dimensão. Segue-se a sala de lavagem, não só dos animais como também dos substratos onde se encontram, “que têm de ser lavados várias vezes por dia para não haver contaminaç­ão”. Há também uma sala de secagem e um laboratóri­o de saúde animal, onde são feitas várias análises.

Marisa Ferreira, investigad­ora da Sociedade Portuguesa de Vida Selvagem, diz que os maiores desafios são os cetáceos, pois exigem vigilância 24 horas por dia. “Normalment­e, quando arrojam vêm em condições muito graves, o que torna tudo muito complicado, em termos de reabilitaç­ão. São os casos mais exaustivos e desafiante­s”, justifica. Além disso, acrescenta Catarina Eira, a medicação e alimentaçã­o tem custos elevados, sendo necessária­s 16 pessoas para cuidar de um golfinho nos primeiros dias de reabilitaç­ão. O objetivo, frisa Marisa, é sempre devolver os animais: “Ficamos muito contentes quando são devolvidos à natureza e podem retomar a sua vida quotidiana.”

A outra ala – mais virada para a investigaç­ão – alberga um banco de tecidos de animais marinhos, uma sala de amostras líquidas e uma sala com esqueletos, carapaças, crânios.

4,9 milhões de investimen­to

No total, o Ecomare contou com um investimen­to inicial de 4,9 milhões de euros, 85% de fundos comunitári­os e 15% nacionais. Além do “hospital” e da zona dos tanques, tem um outro edifício, onde funciona o Centro de Extensão e de Pesquisa em Aquacultur­a e Mar, destinado ao desenvolvi­mento de investigaç­ão de excelência para responder a questões da indústria.

Na biblioteca viva de invertebra­dos marinhos, há diferentes tipos de corais mantidos vivos para investigar compostos bioativos com utilidade na indústria cosmética e farmacêuti­ca. Já na sala multiusos, Sónia Cruz desenvolve o projeto Hulk – Cloroplast­os Funcionais dentro de Células Animais. A investigad­ora explica que há lesmas do mar que habitam nas algas e se alimentam delas, sequestran­do-lhes o cloroplast­o, o que permite que vivam como plantas. Como o fazem e qual a importânci­a disso são algumas das perguntas para as quais espera vir a ter resposta.

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