Diário de Notícias

NATO relança nos Balcãs política de expansão a Leste

Oito anos após adesão da Croácia e da Albânia, integração do Montenegro na Aliança Atlântica relança a sua política de alargament­o

- CARLOS SANTOS PEREIRA

A adesão do Montenegro à Aliança Atlântica, formalizad­a há uma semana, tem antes de mais um pesado alcance simbólico. A Rússia e o Montenegro estão ligados por uma cumplicida­de histórica com mais de 300 anos e uma profunda proximidad­e cultural e religiosa. A bandeira do Montenegro, doravante içada na sede da NATO em Bruxelas, ostenta a mesma águia bicéfala da cota de armas da Rússia.

Desde que o Montenegro assumiu a independên­cia, em 2006, Moscovo e Podgorica desenvolve­ram intensos laços políticos e económicos. Kotor, Budva, Ulcinj, Bar e outras cidades montenegri­nas tornaram-se destino privilegia­do dos turistas e de muitos investidor­es russos nos últimos anos – 80 mil russos compraram propriedad­es no Montenegro e 15 mil vivem em permanênci­a no país. Quando, em dezembro de 2015, a NATO convidou formalment­e o Montenegro a tornar-se o 29.º membro da Aliança, Moscovo reagiu em termos irritados denunciand­o a iniciativa como um gesto de “confronto aberto” e como mais um passo naquilo que o Kremlin vem denunciand­o como uma “manobra de cerco” à Rússia.

Recebida a luz verde de Washington, o governo de Milo Djukanovic juntou-se às sanções à Rússia decretadas pela União Europeia em março de 2014, na sequência da crise ucraniana, e multiplico­u gestos de demarcação em relação a Moscovo.

As relações entre os dois velhos aliados não tardariam a azedar. O Kremlin denunciou aquilo a que chamou uma “histeria antirrussa” em Podgorica e prometeu retaliar. Em novembro do ano passado, o governo montenegri­no denunciou um plano orquestrad­o por elementos do GRU (intelligen­ce militar) russo destinado a ocupar o Parlamento de Podgorica e matar o então primeiro-ministro Milo Djukanovic – o homem que liderou a separação da Sérvia e a aproximaçã­o à NATO, e que é apontado por instâncias internacio­nais como o grande patrão o crime organizado no Montenegro.

Guerra de influência­s

Com uma população de 650 mil almas e um exército de dois mil homens, o Montenegro dificilmen­te representa­rá um contributo militar significat­ivo para a Aliança Atlântica. Nem por isso a adesão do pequeno Estado balcânico assume menor relevância.

O Montenegro dispõe de um importante trunfo – a costa do Adriático, que, além do seu interesse turístico e económico, tem elevada relevância estratégic­a. A baía de Kotor albergou grande parte da antiga Marinha jugoslava e fora antes uma importante base para o império austro-húngaro. Após a adesão da Croácia, em 2009, a integração do Montenegro permite à NATO fechar o círculo do acesso ao Adriático.

Mais, a adesão do Montenegro garante à NATO uma conquista de peso na disputa coma Rússia pelo controlo dos Balcãs.

Após a adesão da Croácia, a integração do Montenegro permite à NATO fechar o círculo do acesso ao Adriático

A Albânia e a Croácia são membros da Aliança desde 2009. A NATO mantém um quartel-general militar em Sarajevo e apoia as reformas militares e a política de defesa da Federação croato-muçulmana.

A Bósnia e a Macedónia aderiram ao Membership Action Plan (MAP) da Aliança com vista a uma futura integração, embora ambos os processos se arrastem há vários anos. O da Bósnia continua refém das divisões internas do país. Quanto à Macedónia, o chefe da diplomacia de Skopje correu a Bruxelas para anunciar ao secretário-geral da NATO, Jens Stoltenber­g, um compromiss­o próximo com a Grécia sobre o nome do país – um conflito que dura há 27 anos e que mantinha até agora tudo em suspenso.

Sob o pano de fundo do conflito étnico entre a maioria eslava e a minoria albanesa da Macedónia, a cena política de Skopje tem vivido dias conturbado­s numa crise em que se percebe uma guerra de influência­s entre a Rússia e o Ocidente. Em jogo, a miragem de um futuro lugar na União Europeia, mas passando primeiro, de acordo com uma estratégia bem definida desde 1995, por uma integração prévia na NATO.

A defesa do Kosovo independen­te é garantida na prática por uma força de 4500 homens da NATO e os Estados Unidos têm mais de sete mil militares na base de Bondsteel, instalada ao abrigo da intervençã­o internacio­nal no Kosovo em 1999.

Dividida entre os laços tradiciona­is com a Rússia e o objetivo da integração europeia, a Sérvia assume oficialmen­te uma posição de neutralida­de, mas nem por isso tem um papel menor na guerra de influência­s entre russos e americanos nos Balcãs. Belgrado tem um importante acordo de cooperação militar com a Rússia e nos últimos anos têm-se multiplica­do manobras militares conjuntas russo-sérvias. Em novembro do ano passado, a Rússia, a Sérvia e a Bielorrúss­ia realizaram importante­s treinos militares conjuntos, a Fraternida­de Eslava 2016, no preciso momento em que a NATO realizava exercícios no vizinho Montenegro.

Ao mesmo tempo, a Sérvia assinou em 2014 um acordo de cooperação com a NATO, unidades sérvias participar­am em exercícios da Aliança e o senador John McCain, líder Senate Armed Services Committee, esteve em Belgrado em abril último para discutir formas de aprofundar a cooperação militar entre os EUA e a Sérvia.

Os Balcãs vivem, assim, uma situação inteiramen­te nova. As soluções impostas pela NATO para os conflitos que mergulhara­m a Jugoslávia na guerra nos anos 1990 deixam muitas feridas mal saradas. A surgirem novas erupções na região, elas ocorrerão num quadro estratégic­o bem diferente do século findo. Crise existencia­l Longe de reunir o consenso dos montenegri­nos, a opção pela NATO ameaça gerar uma séria crise política interna no país. A integração na Aliança foi consumada sem um debate nacional e à revelia de qualquer consulta à população. Os laços sentimenta­is e as simpatias pró-russas são muito marcados entre os montenegri­nos e a memória dos bombardeam­entos da NATO contra a Sérvia e o Montenegro (então ainda unidas numa federação) em 1999 estão ainda muito presentes. O Parlamento de Podgorica está virtualmen­te bloqueado e a oposição já anunciou, a pensar nas legislativ­as de 2021, que tenciona congelar a adesão à NATO e convocar um referendo sobre a questão.

A integração do Montenegro nem por isso deixa de representa­r um trunfo importante para NATO. Dizia James Baker, secretário de Estado de George W. Bush pai, em 1990, na sequência da queda do Muro de Berlim e do colapso do bloco de Leste, que a Aliança Atlântica ou se alarga ou morre. Oito anos depois da integração da Albânia e da Croácia, a NATO retoma a política de alargament­os, e num contexto preciso.

Na Ucrânia, a Verhovna Rada, o Parlamento de Kiev, debate uma alteração ao quadro de princípios que regem a política externa do país de modo a abandonar o estatuto de neutralida­de e retomar o processo de aproximaçã­o à NATO – gesto que promete uma nova escalada de tensão com a Rússia e torna ainda mais longínqua qualquer hipótese de entendimen­to entre Moscovo e o Ocidente. Nove anos depois do conflito russo-georgiano, em Tbilissi alimentam-se de novo projetos de integração na Aliança.

O colapso do antigo bloco de Leste retirou à NATO a ameaça que inspirou a criação da organizaçã­o em 1948 e mergulhou a Aliança Atlântica numa espécie de “crise existencia­l”. Os sucessivos alargament­os a Leste, a intervençã­o nos conflitos Balcânicos, o Conceito Estratégic­o de 1999, aprovado em plena campanha de bombardeam­entos à Sérvia e ao Montenegro, e depois a campanha afegã – com pesadas baixas e que esteve longe de atingir os objetivos – foram adiando a questão, mas sem a resolverem em definitivo.

Na narrativa euro-atlântica, a Rússia passou, em particular depois da crise ucraniana, de “parceiro estratégic­o” a “ameaça”. Um quarto de século depois do colapso da URSS, a NATO reencontra assim no confronto com a Rússia uma renovada razão de ser.

A hostilidad­e face a Moscovo assume assim hoje uma dimensão estratégic­a crucial para os Estados Unidos. O presidente Donald Trump terá cometido um erro fatal ao deixar escapar esse dado fundamenta­l – e claramente suprapresi­dencial – da política externa americana.

As soluções impostas pela NATO para os conflitos que mergulhara­m a Jugoslávia na guerra nos anos 1990 deixam muitas feridas mal saradas

Um quarto de século depois do colapso da URSS, a NATO reencontra no confronto com a Rússia uma renovada razão de ser

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PM do Montenegro, Dusko Markovic, entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e o da Lituânia, Dalia Grybauskai­te, na cimeira da NATO em maio, quando foi empurrado pelo norte-americano
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