Diário de Notícias

Arraiais, sardinhas e manjericos

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Era sexta-feira. Desembarca­ra no Aeroporto Humberto Delgado, cheia de expectativ­as. M. Krieger, uma amiga de descendênc­ia brasileira, voltara a Lisboa para passar uns dias de férias merecidas. Preferenci­almente, instalou-se num hostel na Baixa Pombalina.

Nesta altura, a cidade menina e moça fervilha com a avalancha de turistas ávidos de vivenciar de tudo um pouco do que ela tem de culturalme­nte interessan­te. Para isso, ofereci-lhe a última agenda mensal da EGEAC, que destaca com muitas sugestões as Festas de Lisboa 2017. Ficou encantada com a capa, mas queria sair, desbravar as sete colinas e estar no meio do povo, quiçá dançar, palmilhar as ruelas dos bairros típicos como Alfama ou Mouraria, também carregada de histórias de imigrantes africanos e asiáticos que ali moram.

No 10 de junho, assinala-se o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidade­s. Ela estava mais entusiasma­da em mergulhar nas noites de Santo António, no dia 12, e ver deslizar as Marchas Populares pela Avenida da Liberdade, iluminada a condizer. Nenhum de nós adivinhava a vitória da comunidade de Alfama, efusivamen­te celebrada no feriado, dia 13, em todo o bairro.

No meio de tanta oferta, a noitada de sábado prometia no Bairro Alto, onde atuou, pela primeira vez, o África Negra, uma mítica banda musical são-tomense dos anos 70 que já exibira a sua genuidade em Berlim e Frankfurt (Alemanha), depois de uma exibição vibrante no Festival Músicas do Mundo de Sines (2014). Deparámos com o frenesim de gentes que subiam e desciam as ruas para sentir o calor das festas e o pulsar do bairro, oferecer os manjericos em vasos de barro, prendar amores com quadras e, indubitave­lmente, trincar sardinhas assadas no pão ou desfiando-as à mesa, regadas sobretudo com cerveja de qualidade inquestion­ável.

Nada que se compare no que toca à qualidade e à diversidad­e, mas que fizera M. Krieger lembrar-se das festas de cerveja, como uma das que assisti em Colónia já lá vai algum tempo. Se há algo equiparáve­l, ela recorda a Oktoberfes­t em Munique, entre setembro e outubro, que coincide com as festas das vindimas nas regiões vinícolas da Alemanha. Acabámos, assim, por evitar temas chatos sobre a atualidade política quando dois colegas se encontram. Seria uma aberração que poderia estragar as férias.

O superior interesse em descobrir cada ventre da cidade era grande que, no domingo, fomos ver Lisboa do Castelo de São Jorge. Mais abaixo, das Portas do Sol, com vista sobre os telhados de Alfama, vê-se o lençol do majestoso rio Tejo, com o Cristo Rei ao fundo, na Margem Sul. Mais perto de nós, erguem-se as infraestru­turas do novo terminal de cruzeiros turísticos em alternativ­a à doca de Santa Apolónia.

Ir depois até ao Panteão Nacional, onde permanecem os restos mortais de figuras emblemátic­as da portugalid­ade como a fadista Amália Rodrigues e o futebolist­a Eusébio, era uma alternativ­a. Mas, pelo seu significad­o, preferi mostrar à minha amiga o Museu do Aljube, antiga cadeia política que guarda memórias, entre 1928 e 1965, de resistênci­a ao regime ditatorial de Salazar e da luta pela liberdade em Portugal e nas antigas colónias em África. Ali, numa das salas, está uma oportuna exposição temporária em homenagem a Deolinda Rodrigues (Angola), Josina Machel (Moçambique) e Titina Silá (Guiné-Bissau), mulheres heroínas africanas que participar­am na luta de libertação contra o colonialis­mo português.

Muito mais sobre este período, entre obras de vários autores, encontra-se na Feira do Livro de Lisboa, na Marquês do Pombal, que M. Krieger fez questão de visitar por conta própria. Até porque queria saber um pouco mais dos percursos do escritor Eberhard Fedtke, através da sua obra Caminhada – Um Alemão em Portugal, reeditada pela editora Oxalá.

À tarde, ainda foi possível dar um salto a Belém, ao Museu da Antropolog­ia e ao Arquivo Histórico, na Rua da Junqueira, para confirmar as atrocidade­s da escravatur­a até à sua abolição em 1878. Estão ocultas, mas de Belém a Santos, passando pela Praça do Comércio em direção a Santa Apolónia, ocorreram vários episódios relatados durante as visitas guiadas pela historiado­ra Isabel Castro Henriques. Holocausto­s à parte, trata-se de um período que o tempo e as (novas) obras de requalific­ação da cidade vão apagando. Nem nos apercebemo­s de tais memórias de trabalho escravo quando dançávamos nos animados arraiais do Cais do Sodré.

Com quiosque e palco montado para concertos, a Praça do Município é outro lugar emblemátic­o. Aí, no dia seguinte, enquanto recuperáva­mos energia para as marchas populares na Avenida, a conversa, a dado momento, girou em torno das próximas eleições autárquica­s e das disputas titânicas para conquistar lugares na Câmara Municipal de Lisboa. Afinal, algo em torno desta dinâmica citadina torna este edifício do poder local tão apetecível, porque tem sido uma espécie de rampa de lançamento de alguns candidatos a primeiro-ministro.

Depois do feriado em Lisboa, ainda restaram uns dias de menor azáfama para descanso, que incitaram M. Krieger a pensar num possível livro sobre os segredos e a magia desta cidade europeia multicultu­ral. E, ainda não chegara o dia da partida, de volta a Berlim, ela já tinha saudades de ter que deixar a capital. O que me fez questionar: terão os operadores turísticos razão para recear não serem capazes de atrair mais turistas alemães para Portugal?

Afinal, Lisboa, não apenas a das sardinhas e dos manjericos, tem muitos encantos.

Depois do feriado em Lisboa, ainda restaram uns dias de menor azáfama para descanso, que incitaram M. Krieger a pensar num possível livro sobre os segredos e a magia desta cidade europeia multicultu­ral

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JOÃO CARLOS CORRESPOND­ENTE EM LISBOA DA RÁDIO DW-ÁFRICA -ALEMANHA

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