Diário de Notícias

Ontem, com a torre à frente

- FERREIRA FERNANDES JORNALISTA

Uma torre alta de 24 andares deu-se horas, isolada e iluminada de fogo por dentro, para expor a tragédia. E nós tivemos tempo de a entranhar, desde as chamas noturnas à fachada calcinada pelo dia dentro. Já andamos todos a lidar, há demasiados anos, com a agonia e a morte. Homens ajoelhados à espera da faca, meninas de olhos de corça a adivinhar o destino próximo, restos de carne depois da bomba... Ontem, demo-nos conta de uma injustiça que temos emprestado às vítimas do terrorismo. A nossa compaixão por elas sofre como que de uma concorrênc­ia do ódio, do desprezo e da raiva contra os terrorista­s. Como se só tivéssemos uma mão para afagar, porque a outra fica guardada para a ira. E é bom que assim seja, porque o perdão militante não é justo quando a culpa dos homens é indizível. Ontem talvez tenha também havido culpas – de cupidez ou de desleixo (a torre era para gente modesta...) – mas, à luz do que sabíamos, era uma tragédia acontecida sem essa vontade de matar a que temos assistido por estes tempos. Por isso, um sentimento novo e esquisito, uma dor vinda só de onde nasce a dor, sem explicaçõe­s vindas do lugar onde elas se preparam. Impotência pura. Ontem, ouvimos um grito, esse “help!” de tantos filmes, que ontem soubemos que nunca antes tínhamos ouvido. E as duas mulheres agarradas uma à outra, acenando da janela em brasa. E os telemóveis acesos implorando ajuda. E essa imagem de um fio coleante de lençóis amarrados e pendentes por vários andares, tão símbolo da coragem de quem os fez e tão inúteis porque alguma coisa falhou. Somos tanto, somos tão frágeis.

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