Entediados que andam!
Olhando para o comentário dominante e para muita da opinião publicada que a luta dos trabalhadores tem suscitado, inusitadamente, anote-se, seríamos levados a pensar que até aquela réstia de discernimento que se admitia existir ardeu. Uma leitura ligeira conduziria à ideia de que a desorientação se instalou nesse exército de opinadores, ou pior ainda, que a sua inspiração analítica foi possuída por malévolas fontes criativas. É verdade que por preconceitos, ou por ideias feitas, aliás filhas directas daqueles, ou por razões mais fundas e plausíveis, indissociáveis do posicionamento de classe, os resultados dificilmente deixariam de redundar no que se ouve e lê. Os mesmos, atrevamo-nos a usar neste caso o superlativo, os mesmíssimos que antes lançavam chispas sobre as lutas e as greves derretem-se em pranto porque, segundo eles, as lutas acabaram. Esses mesmos que enchiam páginas e minutos infindáveis em televisão sobre os efeitos dantescos das greves, sempre de microfone em riste para encontrar quem testemunhasse os incómodos que certa paralisação lhe causara, lastimam-se pela ausência de greves e pelo marasmo social em que o país estaria mergulhado. Esses mesmos que não perdiam a mínima oportunidade para pôr os trabalhadores e as acções em defesa dos seus direitos em oposição e confronto com o “país que trabalhava” surgem agora entediados pelo não preenchimento desse elemento a que parecem rendidos. Esses mesmos que verberavam as lutas e os alegados prejuízos para a economia nacional, quando outros estariam embrenhados na sacrificada missão de salvar a nação, vivem agora nesse vazio desgraçado que os terá deixado órfãos de mãe enjeitada. Em condições normais, não soubéssemos nós ao que andam, e a tentação seria de accionar sirenes, convocar médicos e até videntes, ampliar hospícios e importar coletes de forças, tais os sinais de perturbação patenteados.
A questão é outra. Os que antes vendiam essa ideia de um país a fazer sacrifícios enquanto outros se dedicavam a essa farra de greves e lutas faziam-no com os mesmos pressupostos e objectivos com que vendem essa ideia falsa de uma decretada paz social ou de sindicatos domesticados: desacreditar a luta e as suas razões, tentar influenciar, eles sim, a acção dos trabalhadores, procurar condicionar a partir de fora a independência de classe do movimento sindical e das organizações dos trabalhadores. Tanto assim é que de novo se reeditam, para já com a contenção que uma outra e súbita leitura desacreditaria, os avisos quanto a um “verão quente” ditado não pelos seus interesses mas associados a outras agendas políticas. Quem assim pensa não age por ignorância. Sabe que a luta, e o recurso que dela os trabalhadores fazem, não é um hobby ou uma forma de actividade lúdica, que ela corresponde, senão à única, à forma mais decisiva que têm na sua relação com o capital de fazer valer direitos, conquistar salários. A luta, e em particular as formas que assume, é a que os trabalhadores a cada momento decidem que corresponde à defesa dos seus direitos. A luta não se decreta nem se constrói à margem da vontade daqueles que a protagonizam. Organiza-se, desenvolve-se e amplia-se a partir das condições objectivas e subjectivas existentes, da identificação dos objectivos em torno da qual se mobiliza, atendendo à situação e ao sentido geral em que se desenvolve – a maior parte das vezes para resistir e defender direitos, outras vezes para conquistar direitos, salários e condições de trabalho, mas sempre com o carácter decisivo que assume enquanto processo de transformação e valorização dos trabalhadores. Só quem olha para os trabalhadores como peças da engrenagem da exploração ou como indivíduos descartáveis ao sabor da maquinação do máximo lucro pode considerar que os trabalhadores se mobilizariam, paralisariam ou se manifestariam por mera ordem de um imaginável centro de comando. Para descanso dessas almas, confirme-se o que tem de ser confirmado. Sim, há luta e muita luta, no sector público e no privado, mesmo que ela teime, em particular neste último, em ser ignorada. Por mais que os contrarie, há mais vida para lá do que é dado como existente em função de ser ou não notícia. Nas empresas e nos sectores, com uma dimensão reivindicativa insubstituível e ganhos alcançados, reflectindo um acrescento de confiança nos seus resultados, não cedendo a recados de quem as abomina, dando valor a cada luta travada, ignorando aqueles que em coro aparecem a lastimar-se de acções nacionais como a de 3 de Junho serem “poucochinho” porque segundo eles a greve geral é que era. Já os percebemos. Têm de viver com isso lá no seu conforto de opinião formatada, mesmo que desejem que a situação evolua não para abrir campo aos trabalhadores mas para regressar a um passado recente. Os trabalhadores, esses, lá se manterão suportados na sua experiência de luta e na afirmada independência de decisão quanto à forma de fazer valer os seus direitos.
Os trabalhadores, esses, lá se manterão suportados na sua experiência de luta e na afirmada independência de decisão quanto à forma de fazer valer os seus direitos