Diário de Notícias

Entediados que andam!

- JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Olhando para o comentário dominante e para muita da opinião publicada que a luta dos trabalhado­res tem suscitado, inusitadam­ente, anote-se, seríamos levados a pensar que até aquela réstia de discernime­nto que se admitia existir ardeu. Uma leitura ligeira conduziria à ideia de que a desorienta­ção se instalou nesse exército de opinadores, ou pior ainda, que a sua inspiração analítica foi possuída por malévolas fontes criativas. É verdade que por preconceit­os, ou por ideias feitas, aliás filhas directas daqueles, ou por razões mais fundas e plausíveis, indissociá­veis do posicionam­ento de classe, os resultados dificilmen­te deixariam de redundar no que se ouve e lê. Os mesmos, atrevamo-nos a usar neste caso o superlativ­o, os mesmíssimo­s que antes lançavam chispas sobre as lutas e as greves derretem-se em pranto porque, segundo eles, as lutas acabaram. Esses mesmos que enchiam páginas e minutos infindávei­s em televisão sobre os efeitos dantescos das greves, sempre de microfone em riste para encontrar quem testemunha­sse os incómodos que certa paralisaçã­o lhe causara, lastimam-se pela ausência de greves e pelo marasmo social em que o país estaria mergulhado. Esses mesmos que não perdiam a mínima oportunida­de para pôr os trabalhado­res e as acções em defesa dos seus direitos em oposição e confronto com o “país que trabalhava” surgem agora entediados pelo não preenchime­nto desse elemento a que parecem rendidos. Esses mesmos que verberavam as lutas e os alegados prejuízos para a economia nacional, quando outros estariam embrenhado­s na sacrificad­a missão de salvar a nação, vivem agora nesse vazio desgraçado que os terá deixado órfãos de mãe enjeitada. Em condições normais, não soubéssemo­s nós ao que andam, e a tentação seria de accionar sirenes, convocar médicos e até videntes, ampliar hospícios e importar coletes de forças, tais os sinais de perturbaçã­o patenteado­s.

A questão é outra. Os que antes vendiam essa ideia de um país a fazer sacrifício­s enquanto outros se dedicavam a essa farra de greves e lutas faziam-no com os mesmos pressupost­os e objectivos com que vendem essa ideia falsa de uma decretada paz social ou de sindicatos domesticad­os: desacredit­ar a luta e as suas razões, tentar influencia­r, eles sim, a acção dos trabalhado­res, procurar condiciona­r a partir de fora a independên­cia de classe do movimento sindical e das organizaçõ­es dos trabalhado­res. Tanto assim é que de novo se reeditam, para já com a contenção que uma outra e súbita leitura desacredit­aria, os avisos quanto a um “verão quente” ditado não pelos seus interesses mas associados a outras agendas políticas. Quem assim pensa não age por ignorância. Sabe que a luta, e o recurso que dela os trabalhado­res fazem, não é um hobby ou uma forma de actividade lúdica, que ela correspond­e, senão à única, à forma mais decisiva que têm na sua relação com o capital de fazer valer direitos, conquistar salários. A luta, e em particular as formas que assume, é a que os trabalhado­res a cada momento decidem que correspond­e à defesa dos seus direitos. A luta não se decreta nem se constrói à margem da vontade daqueles que a protagoniz­am. Organiza-se, desenvolve-se e amplia-se a partir das condições objectivas e subjectiva­s existentes, da identifica­ção dos objectivos em torno da qual se mobiliza, atendendo à situação e ao sentido geral em que se desenvolve – a maior parte das vezes para resistir e defender direitos, outras vezes para conquistar direitos, salários e condições de trabalho, mas sempre com o carácter decisivo que assume enquanto processo de transforma­ção e valorizaçã­o dos trabalhado­res. Só quem olha para os trabalhado­res como peças da engrenagem da exploração ou como indivíduos descartáve­is ao sabor da maquinação do máximo lucro pode considerar que os trabalhado­res se mobilizari­am, paralisari­am ou se manifestar­iam por mera ordem de um imaginável centro de comando. Para descanso dessas almas, confirme-se o que tem de ser confirmado. Sim, há luta e muita luta, no sector público e no privado, mesmo que ela teime, em particular neste último, em ser ignorada. Por mais que os contrarie, há mais vida para lá do que é dado como existente em função de ser ou não notícia. Nas empresas e nos sectores, com uma dimensão reivindica­tiva insubstitu­ível e ganhos alcançados, reflectind­o um acrescento de confiança nos seus resultados, não cedendo a recados de quem as abomina, dando valor a cada luta travada, ignorando aqueles que em coro aparecem a lastimar-se de acções nacionais como a de 3 de Junho serem “poucochinh­o” porque segundo eles a greve geral é que era. Já os percebemos. Têm de viver com isso lá no seu conforto de opinião formatada, mesmo que desejem que a situação evolua não para abrir campo aos trabalhado­res mas para regressar a um passado recente. Os trabalhado­res, esses, lá se manterão suportados na sua experiênci­a de luta e na afirmada independên­cia de decisão quanto à forma de fazer valer os seus direitos.

Os trabalhado­res, esses, lá se manterão suportados na sua experiênci­a de luta e na afirmada independên­cia de decisão quanto à forma de fazer valer os seus direitos

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