Diário de Notícias

NA AMÉRICA DO TIO SILVA O CAVALEIRO PORTUGUÊS DAS TOURADAS NA CALIFÓRNIA

Jovem cavaleiro tauromáqui­co fez carreira na Califórnia, é responsáve­l por uma coudelaria e fala sobre como conciliar o sucesso na América com a saudade de casa

- PAULO TAVARES, em Hilmar

Antes de mais, um esclarecim­ento. Não leu mal. Esta reportagem é sobre a carreira de um jovem cavaleiro tauromáqui­co português na Califórnia. Sim, há touradas na Califórnia. Corridas de touros à portuguesa, organizada­s por portuguese­s, com tudo aquilo a que têm direito, lide a cavalo e pegas, cavaleiros e forcados, mas com uma diferença fundamenta­l – não há sangue na arena. Chamam-lhe bloodless bullfight, existem desde os anos 1970/1980, e esse foi um dos truques da comunidade portuguesa na costa oeste dos Estados Unidos para manter uma parte importante das suas tradições. O outro truque, ou neste caso uma imposição do legislador, obriga a que as touradas nunca aconteçam como espetáculo­s isolados, mas antes como parte de um qualquer evento religioso.

Mas como é que não há sangue na arena? A palavra-chave é: velcro. O sis-

tema de fixação inventado por um engenheiro suíço no final dos anos 1940 foi a solução para contornar a legislação, rígida, e o lóbi de defesa dos direitos dos animais, muito ativo na Califórnia. Cola-se um grande quadrado de velcro ao cachaço do touro, e nos ferros substitui-se as pontas por um outro pedaço de velcro. Resulta. A emoção e a coreografi­a mantêm-se e no final podem sempre dizer: “Nenhum animal foi ferido durante o espetáculo.”

Paulo Jorge Ferreira nasceu há 34 anos em Vila Franca de Xira, mas cresceu uns quilómetro­s mais a norte, na Azambuja. É território da festa brava e a paixão pelas touradas, sobretudo pelos cavalos, apareceu cedo. “Montei a cavalo, pela primeira vez, com os campinos. Os meus pais tinham um restaurant­e na Azambuja e muitas vezes os campinos passavam lá para tomar algo e, como sabiam que adorava touros e cavalos, muitas vezes levavam-me à garupa para os ir ver a trabalhar com o gado. Mais tarde, os meus pais compraram-me uma égua, e foi aí que o gosto se intensific­ou mais.”

Encontrei Paulo Jorge Ferreira no rancho dos irmãos Martins, em Hilmar, no vale de São Joaquim, onde é responsáve­l pela coudelaria – 14 cavalos de lide num total de 22, todos puros-sangues lusitanos. Montava tranquilam­ente o Chibanga (o cavalo negro das fotos) num picadeiro coberto. Paulo chegou à Califórnia há 12 anos. Tinha 21, três de cavaleiro profission­al e pouco para apresentar como resultado da sua carreira nas praças portuguesa­s. “Quando vim para aqui, tive de pedir cem dólares ao meu pai para ter algum dinheiro quando aqui chegasse. Ou seja, ao fim de tourear sete anos em Portugal, três como profission­al, não tinha conseguido juntar dinheiro nenhum, não tinha um tostão. Hoje, ao fim de 12 anos de trabalho aqui, tenho um empreendim­ento muito razoável em Portugal, o que me permite ir para lá e viver desses rendimento­s.” Apesar do sucesso, Paulo tem andado a pensar no regresso a casa – já há de explicar porquê –, mas a América deu-lhe o sonho. “Os Estados Unidos são um mundo completame­nte à parte de Portugal. Na minha atividade, isto é um país com apenas 40 anos de história de tauromaqui­a, sem um mínimo de tradição. Foi a comunidade açoriana que trouxe para aqui essa tradição. A questão é que os preços, o que se paga aqui, é tudo completame­nte à parte do que se pratica em Portugal.” Salários, cachês das corridas, tudo é diferente. A Califórnia permitiu-lhe cumprir um projeto de criança, mesmo que tenha sido em nome da família Martins. “Portugal passa por uma crise muito grande. Eu, como muitos, tive de emigrar à procura de um futuro melhor. Em boa hora o fiz, porque aqui na Califórnia consegui realizar o meu sonho. Não exatamente aquilo que sonhei toda a minha vida, ter os meus cavalos, ter a minha coudelaria, ter as minhas próprias infraestru­turas, mas há 12 anos conheci esta família, que me abriu as portas, que me trata como um filho, e consegui fazer para eles aquilo que sempre sonhei fazer para mim. Tem sido bastante positivo.”

Paulo chegou à Califórnia convidado por aficionado­s portuguese­s que gostaram de o ver tourear nas corridas da RTP, transmitid­as para os Estados Unidos via RTPi. “Tirei a alternativ­a numa corrida da RTP Norte, na Póvoa de Varzim, em 2002. Nessa tarde, ganhei o prémio para melhor lide a cavalo. Repeti as corridas da RTP Norte mais três anos, e foram essas corridas que na altura eram transmitid­as para a América que me abriram as portas para estar aqui hoje.” Veio para fazer umas corridas e ficou. “Gostaram do meu trabalho numa dessas corridas, chamaram-me. Surgiu a oportunida­de, primeiro para vir cá tourear e depois para vir como equitador da coudelaria. Aceitei logo desde o primeiro momento e tem sido muito bom ver o cresciment­o da coudelaria, ano após ano, e também participar no cresciment­o da tauromaqui­a na Califórnia.” A chegada à América, conta, foi triunfal. “Entraram em contacto comigo para que viesse fazer a minha apresentaç­ão na Califórnia, e assim foi, em outubro de 2005, na feira de Thorthon. Foi uma apresentaç­ão triunfal. Tanto que antes de regressar a Portugal trazia na mala já seis corridas contratada­s para o ano seguinte.” Daí surgiu o convite para gerir a coudelaria dos irmãos Martins. A família acolheu-o, quase o adotou, mas esse porto de abrigo numa zona rural do vale de São Joaquim não tornou a mudança menos complicada. “A adaptação foi muito difícil. Não conhecia ninguém, não falava inglês, a própria comida é muito diferente. Mas esta família fez de tudo o que era possível para eu me integrar. E ainda hoje fazem tudo por mim. É a minha segunda família.” Da primeira família, da mãe, lembra uma teimosia com o inglês da escola e confessa que quando chegou à América acabou por dar-lhe razão. Não falava uma palavra. “Nada. Quando andava na escola, lem- bro-me de dizer à minha mãe ‘não sei para que é que ando a aprender inglês se nunca na minha vida vou para Inglaterra’. Mal eu adivinhava que viria para aqui e que era o que mais precisava de aprender inglês naquela turma.”

A cada passo da conversa, Paulo Jorge Ferreira lembra as diferenças entre Portugal e a América. Aqui, na Califórnia, viu o trabalho recompensa­do. “Na vida, sem vontade, sem trabalho, sem humildade, nada se consegue. Foi com essa vontade e com esse crer que eu vim para aqui, para poder ter alguma coisa na vida. Andei em Portugal a lutar durante seis ou sete anos e não consegui.” Mas, se está a cumprir sonhos e objetivos, porquê o regresso a casa, à Azambuja? “Quero voltar porque, como se diz, o dinheiro não é tudo na vida. Ajuda e resolve muitos problemas, mas não é tudo. Já são 12 anos longe da família, longe dos meus pais. Não quero chegar um dia a Portugal e já não os ter ao meu lado. Não quero ficar com esses remorsos para o resto da vida. Penso que com o que já tenho lá, com o que construí entretanto, com os rendimento­s que possuo, consigo fazer a minha vida lá e estar ao pé da minha família.” Paulo responde com o coração e confessa-se dividido. “Posso dizer que estou com o meu coração partido ao meio, dividido. Sei que quando chegar a Portugal vou sentir saudades destas pessoas todas aqui, das grandes amizades que fiz aqui, e estou aqui com saudades da minha família, dos meus amigos, das minhas tradições de lá também…” Não é uma gestão fácil, a da distância e das emoções.

Paulo chegou aos EUA com 21 anos. Pergunto que conselhos daria a outros jovens cavaleiros que queiram fazer o mesmo percurso, escolhas semelhante­s. “Para uma pessoa fazer aquilo de que gosta e com que sempre sonhou, temos de ir para onde nos querem e onde nos sentimos úteis.” O cavaleiro lembra as palavras do mestre Manuel Jorge de Oliveira. Foi na casa dele que passou sete anos, a montar a cavalo todos os dias, e foi com “o mestre” que aprendeu tudo o que sabe sobre cavalos e corridas. “Quando estava em sua casa a aprender, ele dizia-me muitas vezes que as oportunida­des eram como um comboio, só passam uma vez e ou nós apanhamos e entramos ou se o perdemos será muito difícil. Sempre tive isso em consideraç­ão e é com essa mentalidad­e que ando na vida e com essa intuição que caminho todos os dias.” Daí o conselho a quem está agora a dar os primeiros passos na tauromaqui­a equestre: “Nós nunca sabemos quando passa o comboio e a que horas passa, mas ele passa nas nossas vidas pelo menos uma vez e temos de estar preparados para entrar logo, sem receio e sem hesitações”.

 ??  ?? Paulo Jorge Ferreira, no rancho dos irmãos Martins, em Hilmar, montando o Chibanga, um dos puros-sangues lusitanos da coudelaria
Paulo Jorge Ferreira, no rancho dos irmãos Martins, em Hilmar, montando o Chibanga, um dos puros-sangues lusitanos da coudelaria
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 ??  ?? Paulo Jorge Ferreira, no dia em que tirou a alternativ­a como cavaleiro profission­al, na corrida da RTP Norte, na praça da Póvoa de Varzim (em cima à esquerda). Saída em ombros de uma corrida na Feira Taurina de Cuenca, no Equador, ao lado do matador...
Paulo Jorge Ferreira, no dia em que tirou a alternativ­a como cavaleiro profission­al, na corrida da RTP Norte, na praça da Póvoa de Varzim (em cima à esquerda). Saída em ombros de uma corrida na Feira Taurina de Cuenca, no Equador, ao lado do matador...

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