ANA CAROLINA CANTAR E ESCREVER SEM MEDO DOS TERRORISTAS
A cantora brasileira atua hoje no Coliseu de Lisboa com um espetáculo tão intimista como popular. E publica um livro em que conta o que nem disse ao terapeuta
Aviso: a entrevista a Ana Carolina não trata só dos espetáculos que veio dar em Portugal – de sul a norte –, mas também do lançamento de um livro, Ruído Branco. 144 páginas em que a fã irá descobrir quem é a mulher por trás da cantora que sobe ao palco e canta samba atrás de samba, com textos em que fala da ausência do pai na sua vida, da vontade de querer ter um filho, da namorada. Também se quis saber o que vai cantar hoje à noite no Coliseu dos Recreios, um alinhamento de canções que não revela tão facilmente como se sente na sua abertura para falar das grandes questões pessoais. Ou seja, o livro abre a porta da intimidade que pode ser debatida, mas quanto aos espetáculos Ana Carolina quer manter mistério, mesmo que garanta que há sucessos que não faltarão, apesar de o início do espetáculo ser mais radical...
Ana Carolina ri-se bastante e até pede desculpa por “estarmos batendo um papo”. O que não impede de se abordarem muitos temas sérios, entre os quais o de ter atuado na discoteca parisiense Bataclan, momento em que faz das poucas expressões sérias na conversa: “Foi há muitos anos, estava no início da carreira e fazia a abertura do show de Jorge Benjor.” Voltaria a atuar lá com a mesma alegria? Pensa um bom bocado antes de responder em duas fases: “Era um público especial... Acha que eles vão bater nas Torres Gémeas de novo? Portanto, a situação do Bataclan também não voltará a acontecer. Os terroristas não repetem a mesma piada.”
Ainda continua séria enquanto se fala da situação política e social do Brasil: “A questão é que o brasileiro não sabe mais aonde vai parar. Caiu na real e percebeu que está a ser enganado há muitos anos. Seria bom ter as diretas já e tentar encontrar uma figura forte e pegar na rédea do país de novo.”
A partir daqui, a risada será constante. Ana Carolina não sabe estar sem brincar durante muito tempo. Ao ser pressionada para fazer mais revelações sobre o espetáculo, ainda diz: “Tenho uma banda nova com um pianista que também toca baixo, um baterista que pega na guitarra. Não posso dizer que seja intimista, mesmo que o início seja muito pesado. Depois, é a parte mais alegre.” Garante que vai estar com o violão no palco e haverá um duelo entre pandeiros. Terá sucessos ou um alinhamento diferente, insiste-se. “É um espetáculo recente que tem que ver com a minha vontade de cantar músicas de outras pessoas. Estou nesse momento, em que é bom interpretar Chico Buarque – queria cantar todas as músicas dele –, Caetano Veloso, Djavan”, revela, para logo calar: “Não é bom dizer mais para não perder a surpresa.”
Mostram-se-lhe as letras de duas canções, uma antiga, Notícias Populares, e Rosas. Vai cantar? “Nunca se sabe”, diz. Mas vê-se logo que a primeira faz parte da sua pré-história, enquanto a segunda é quase impossível deixar de a interpretar no Coliseu. Trauteia as letras de ambas e diz de Rosas: “Estes versos são muito bons. ‘De tantas mil maneiras que eu posso ser/ Estou certa que uma delas vai te agradar.’ É uma coisa tão positiva e genial que fiquei encantada.” Canta outro verso: “Acompanhadas de um bilhete me deixam nervosa”, e acrescenta: “Se uma rosa vier com um bilhete, muitas coisas podem acontecer.” Ri-se mais um pouco. Quanto à primeira letra? “Já passaram 12 anos. Revejo muito do meu começo.” Questiona-se se o sucesso popular posterior a proíbe de cantar uma letra política: “Não, se estivesse presa à carreira este livro iria ser bem diferente. Fui criando a minha própria liberdade porque o sucesso é muito perigoso. Quero poder fazer o que sinto vontade e se desejar cantar ‘Eles se amaram de qualquer maneira’ [Paula e Bebeto, canção de Milton Nascimento] ninguém me vai impedir.”
E chegámos ao livro Ruído Branco: “Para preto já basta o livro, resolvi colocar um pouco de cor em mim”, refere. “Foi um tempo de escrita e pintura em vez de cantar. A dinâmica de fazer várias artes juntas é difícil e não adianta fazer nada perdidamente”, conclui. O que significa este livro para Ana Carolina? “É um livro autobiográfico, nada escrevi que não tenha acontecido, mesmo que não seja naquela ordem”, garante.
Diga-se que o livro contém muitas revelações. É a afirmação da vontade de ser mãe: “Sofro com esse pensamento há muito tempo e até congelei uns óvulos porque já tenho 42 anos.” Então, a maternidade está para breve? “Como a mulher é quem vai parir, é ela que decide, mais do que o homem, se tem ou não um filho. Se der uma doida, nem tem filhos. Eu não sei o que me vai acontecer porque tem um lado bom e outro mais difícil, a preocupação eterna com aquele ser. Hoje, eu namoro uma mulher; sou eu, a minha noiva, o meu amigo e o namorado dele. Somos quatro famílias para ter um filho. São muitas variáveis.”
Outro tema, o de não ter conhecido o pai e ser fruto de uma relação extraconjugal: “A presença masculina fez-me muita falta, sobretudo por ter de guardar um segredo na adolescência.” E a nova relação? “Namoramos há três anos. Foi uma surpresa quando a Letícia se assumiu, porque eu nunca escondi nada sobre o que era.”
Ruído Branco teve como apresentador o escritor José Luís Peixoto. A razão é simples: “Todas as vezes que vim a Portugal, comprava livros de autores portugueses. Quando o descobri, comecei a ler sem parar Galveias ou Morreste-Me e o que aconteceu é que fiquei paralisada pelo modo como ele diz as coisas. Precisamos de um escritor para fazer certas descobertas e ele consegue levar-me a lugares dentro de mim que desconhecia.”
ANA CAROLINA – GRANDES SUCESSOS Coliseu dos Recreios, Lisboa, 22.00 Amanhã, Santarém, 00.00 Domingo, Coliseu do Porto, 22.00