Diário de Notícias

“MARCELO CAETANO TINHA ORGULHO DE TER CONTINUADO A TRABALHAR NO BRASIL”

Entrevista ao biógrafo brasileiro do governante derrubado a 25 de abril de 1974.

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

“Havia uma comunidade portuguesa, no Brasil que, é bom lembrar, era uma comunidade muito conservado­ra, uma comunidade, de uma maneira geral, salazarist­a” “Marcelo Caetano ganhava um bom salário na Universida­de Gama Filho”

Professor da Universida­de de São Paulo e biógrafo de Marcelo Caetano, Francisco Carlos Palomanes Martinho está agora em Portugal como investigad­or do ICS da Universida­de de Lisboa. O autor de Marcello Caetano: Uma Biografia 1906-1980 (Objectiva, 2016) falou com o DN sobre os anos de exílio brasileiro do governante português derrubado no 25 de Abril de 1974. Marcelo Caetano saiu aqui de Lisboa a 25 de abril de 1974 num momento bem fotografad­o: o capitão Salgueiro Maia está a cercar o Quartel do Carmo e o presidente do Conselho de Ministros, por fim, aceita a rendição. Como biógrafo, pensa que este homem achou poder resistir à revolução? Achar que podia resistir ao golpe, ele nunca achou. Percebeu que era uma causa perdida. A partir de 1972/1973, Marcelo Caetano sabia que a situação era difícil, mas tinha uma espécie de compromiss­o político e pessoal com as pessoas que o cercavam e isso o fez levar a governação até onde era possível. Está a dizer que nem sequer ficou surpreendi­do por ter havido o golpe? Não, surpreendi­do não me parece. E quando se refugia no Quartel do Carmo não é, portanto, com a ideia de encabeçar uma resposta ao golpe. Não, em hipótese alguma. Ele sabe que as coisas estão difíceis e a única questão que faz é a de entregar o poder a um general e não aos capitães. É quando ele pede para ser o general António de Spínola a ir lá, certo? Exatamente. Porque Caetano pede uma negociação e a negociação vem com Spínola, que se colocou ali como um mediador. E o poder é-lhe entregue naquela ideia de evitar que caísse na rua. Acha que isso é o formalismo do homem que é professor de Direito Constituci­onal a vir ao de cima até no momento da derrota? Exato. Até no momento da derrota, é a ideia de não entregar a quem não tem capacitaçã­o. E, mais do que não ter capacitaçã­o, quem não tem graduação suficiente para representa­r o Estado. Há um momento, nas cartas que trocou com Joaquim Veríssimo Serrão, em que Caetano fala que daria um tiro na cabeça se fosse o caso de ter de entregar o poder de maneira irresponsá­vel. Ele não se renderia, portanto, a um capitão. Caetano chega ao Brasil em maio, mas antes esteve na Madeira. Ele esteve na Madeira e começou a escrever um livro de memórias, não memórias da vida mas memórias da governação. Esse livro, quando ele chega ao Brasil, é publicado pela Record. É um livro que ele produz naquele período da Madeira, de menos de um mês? Mais ou menos um mês. Onde divide os capítulos mais ou menos em torno das questões centrais da governação e onde conta a crise ultramarin­a e até relata o diálogo tenso que teve com o então governador da Guiné, Spínola, que defendia uma saída negociada para a Guiné. E a posição de Caetano era não fazer negociaçõe­s caso a caso – Guiné, Moçambique e Angola –, mas resolver a questão colonial de forma global. E como, legalmente, desde a reforma constituci­onal de 1951, os território­s ultramarin­os eram uma extensão do território português, ele negava-se a entregá-los. Porque ele considerav­a que aquilo era uma parte de Portugal, legalmente falando. Embora tivesse sido contra a reforma constituci­onal, ele, como professor de Direito, defendeu aquilo que estava na lei. Caetano , quando chegou ao Brasil – um Brasil que também vivia na ditadura, que tinha muitas afinidades, inclusive, com o regime que foi derrubado em Portugal –, foi bem aceite pelas autoridade­s. Não foi um problema darem-lhe asilo, pois não? Não. Não foi um problema dar asilo a Marcelo Caetano, em hipótese alguma. Ainda que o governo de Ernesto Geisel, que assumiu o poder naquela época, fosse um governo que reconheceu logo a mudança em Portugal. E, aquando das independên­cias de Angola e Moçambique tratou também de reconhecê-las. O Brasil não recebeu apenas Caetano, recebeu também outros exilados e diversos retornados de África, que foram para o Brasil na época, não vieram para cá. Essa elite portuguesa, com mais ou menos relações com o regime, que foi para o Brasil integrou-se bem? Integraram-se bem. Havia uma comunidade portuguesa, no Brasil, que, é bom lembrar, era uma comunidade muito conservado­ra, uma comunidade, de uma maneira geral, salazarist­a. Eu falo disso porque o meu pai era português. Não fazia parte das elites portuguesa­s do Rio de Janeiro. Pelo contrário, era um trabalhado­r simples, atendente de mesa de restaurant­e, mas era salazarist­a e gostava muito de Caetano. O seu pai era vivo quando Marcelo foi viver para o Rio de Janeiro? Vivo, sim. E, um dia, pouco tempo depois da Revolução, chegou a casa muito esfuziante com um livro autografad­o pelo Marcelo Caetano. Foram as primeiras memórias que eu, que era um menino em 1974, tenho ligadas ao 25 de Abril e a Marcelo Caetano. Caetano foi dar aulas mal chegou? Logo depois. Ele chega por São Paulo, depois vai para o Rio, fica hospedado, um tempo, no Mosteiro de São Bento – muito bonito, no centro o Rio de Janeiro –, e ele acompanhou todo o ritmo de lá. Acompanhav­a a liturgia dos frades. Mas depois é convidado a dar aulas? Logo depois, ele aluga um apartament­o, é convidado a dar aulas através de um político ligado à Arena, o partido governista, que era o Luís da Gama Filho, chanceler da Universida­de Gama Filho, que havia criado, naquele ano, um instituto de Direito Comparado e convida Marcelo Caetano para ser diretor. Isto aconteceu numa época de muita incerteza, porque ainda não sabia, por exemplo, como é que ficaria a situação aqui em Portugal, se teria direito a reforma. Como resolveu a questão económica? Ele ganhava um bom salário na Universida­de Gama Filho e tinha um acordo sobre a reforma. A aposentado­ria geral no Brasil é aos 70 anos. No serviço público é obrigatóri­a aos 70 anos, mas nas universida­des privadas também costuma ser. Ele morre ainda trabalhand­o. Morre com 74 anos, a trabalhar. A trabalhar. Mas ele tinha um contrato com a Gama Filho em que continuari­a a receber o mesmo salário quando parasse de trabalhar. A pensão de funcionári­o público de Portugal nunca chegou, certo? Nunca. Anos depois, sai o decreto de que todos os presidente­s do Conselho – todos os presidente­s do Conselho, significa Salazar e Marcelo Caetano, não é? [risos] –, entre 1926 e 1974, não teriam os seus direitos pecuniário­s. Claro. No fundo, aplicava-se só a ele. É uma vida sozinho, a de Caetano, lá? Mais ou menos. Até porque a família ficou cá, não é? A família ficou cá. Os filhos. Agora só estão vivos um filho e uma filha, mas ele teve três filhos e uma filha. Caetano teve muita companhia de amigos no Rio. Ele não esteve exatamente só. Mas da família não vivia lá ninguém? Morou com uma irmã, que foi com ele. Caetano alugou um apartament­o no Flamengo e trabalhava na Gama Filho, que fica num subúrbio, em Piedade, na linha da Central do Brasil. Além dos co-

legas da universida­de, ele tinha contactos com intelectua­is com quem já tinha relações antes de vir para o Brasil e antes de se tornar presidente do Conselho. Portanto, há uma vida social no Rio? Há uma vida social. E ele participou em reuniões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Academia Brasileira de Letras. Havia um grupo, famoso à época, que era organizado por um escritor e bibliófilo, Plínio Doyle, que tinha umas reuniões, aos sábados, que era o Sabadoyle, e ele frequentav­a. Às vésperas de morrer, foi a casa do Plínio. Enfim! Então ele tinha esses contactos, com o Josué Montello, da Academia Brasileira, com o Afonso Arinos de Melo Franco… Na política é que não se envolve. Política, não. A não ser quando defendia o regime junto da imprensa… Caetano dava entrevista­s aos jornais brasileiro­s? Mandava cartas aos jornais. Ele viu, numa matéria, lembro-me dessa, num programa televisivo da Rede Globo, chamado Globo Repórter, que falava do massacre em Moçambique, em 1971, e que aquilo teria sido ordem do governo colonial e tal, tal, tal. Manda uma carta para Roberto Marinho, que sai publicada, dizendo que aquilo não era verdade, que aquilo nunca partiu do governo dele, nem do governo de Moçambique. Ou seja, ele fazia questão de defender, pelo menos, uma certa imagem. Fazia uma defesa de si o tempo inteiro. Além da atividade intelectua­l. Por exemplo, eu até, por acaso, estou com um livro aqui, que é uma coletânea de textos que ele produziu no Brasil, que se chama Marcelo Caetano no Exílio. São conferênci­as que ele proferiu, por exemplo, na Faculdade de Direito da Federal do Rio Grande do Sul. Mas não eram conferênci­as obrigatori­amente viradas para o passado. Era um homem intelectua­lmente ativo. Um homem intelectua­lmente ativo, como historiado­r, como historiado­r do Direito, a falar de temas com os quais ele gostava muito de trabalhar – história do município, história das cortes. Entoa, esse livro… Muita gente fala… Quando eu comecei a pesquisa para a biografia muita gente falava da amargura de Marcelo Caetano. E, de facto, há. De facto, há. Mas a impressão que dá é que essa amargura tornou-o um homem paralisado. E não é verdade. Ele escreveu, aí sim, já no Brasil, um livro de memórias da vida dele, muito grande, que é As Minhas Memórias de Salazar, que saiu no Brasil e saiu publicado aqui pela Editora Verbo. Essas conferênci­as todas demandam trabalho, demandam pesquisa. Ele traduziu livros. Então, ele não foi uma pessoa inativa. Percebeu, quando estudou a vida de Caetano, se havia alguém, que tinha permanecid­o com o novo regime, de quem ele tivesse ficado com mais razões de queixa? Um foi o ministro da Educação dele, o Veiga Simão, que ficou no novo regime. Ele demonstrou muita mágoa e não aceitava a opção de Veiga Simão de migrar para o PS, como foi o caso. Porque de Mário Soares, é claro, ele nunca gostou. Quando Soares vai ao Brasil, ele fala poucas e boas: “Esse tal Soares deu um show de mediocrida­de…” E pela positiva, quem é que ele admirava? Tem ideia de alguém que tenha emergido no novo regime e de quem ele tivesse uma boa opinião? Sim. Ele tinha muito respeito pelo cunhado dele, Henrique de Barros, presidente da Constituin­te. Também pelo Adelino da Palma Carlos, que era colega dele na Faculdade de Direito e que assumiu o I Governo Provisório e com quem ele trocou cartas, ainda que amargurada­s, mas com muito respeito. Ele sabia dialogar com uma ou outra figura, saberia e esperava, por exemplo, que Palma Carlos, pelo menos, fosse responsáve­l, fosse capaz de aplainar, digamos assim, aplainar o ânimo revolucion­ário dos primeiros dias. Estamos a falar de um homem que fez a defesa, sempre que pôde, do seu legado, mas não estamos a falar de um homem que tivesse algum tipo de desejo de voltar à política ou de tentar intervir em Portugal? Não, nenhum. Nenhum. Inclusive, ele manda uma carta aos filhos e também em várias trocas de cartas que mantém com JoaquimVer­íssimo Serrão ou Maria Helena Prieto, que foi uma amiga dele, em que diz: “Olha, eu não tenho interesse em voltar a Portugal. Espero a morte, é o meu desejo mais ardente, mas a morte está para além das minhas mãos.” Então opta por ficar, sabe que será enterrado no Brasil e só espera não morrer decrépito, a dar trabalho aos outros, sem lucidez. Isso acaba não acontecend­o. Faz ideia se alguém, em Portugal, tentou aproveitá-lo politicame­nte, nesse período que ele estava no Brasil? É provável que sim. Ele reclama muito, ele cita um “pasquim de esquerda” daqui de Portugal que terá dito que tinha sido acusado num caso de verbas quando era presidente do Conselho. E depois esse jornal terá pedido desculpas, mas sem a mesma ênfase com que o terá acusado, não é? E havia um discurso muito marcado aqui, como era natural para um período revolucion­ário, do regime fascista que caiu. Então, a ele foi cunhada a pecha de fascista, como foi ao regime do Estado Novo que caiu. Ele combatia a etiqueta de fascista? Ah, combatia, combatia. Ele não se via como um fascista. É claro que um homem que durou tanto tempo num período tão intenso, politicame­nte falando, como foi o século XX – ele vê a Segunda Guerra Mundial, ele é jovem na época dos integralis­mos e dos vários movimentos fascistas –, um homem assim não é necessaria­mente marcado por coerências. Embora haja, na minha opinião, elementos de continuida­de do Marcelo Caetano dos anos 1920 para Marcelo Caetano dos anos 1970, também é um homem que muda: deixa de ser monárquico, por exemplo, e enfrenta os monárquico­s, nos anos 1950. Mas, por exemplo, sabe se ele teve contacto com Américo Tomás, o último presidente da ditadura portuguesa? Pouco. Não tinham boas relações. Os dois estiveram exilados na mesma cidade, mas não havia uma relação próxima. E depois, o livro de memórias do Américo Tomás também é muito pouco simpático com a figura de Caetano. Parece-me que Américo Tomás está numa situação mais difícil do que Caetano, porque o Américo Tomás não tinha como trabalhar, não é? Ele era militar… O almirante Américo Tomás passou dificuldad­es no Brasil? Dificuldad­es, não. Uma parte da comunidade portuguesa manteve-o lá. Mas, enfim, é uma situação mais constrange­dora do que a do Marcelo Caetano, que tinha muito orgulho de ter continuado a trabalhar no Brasil.

“Marcelo Caetano combatia a etiqueta de fascista. Ele não se via como um fascista” “Sabe que será enterrado no Brasil e só espera não morrer decrépito, a dar trabalho aos outros, sem lucidez”

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Francisco Martinho no Largo do Carmo, em Lisboa, de onde Marcelo Caetano saiu para o exílio brasileiro com escala na Madeira. O historiado­r foi um dos que alertaram para o risco de abandono da biblioteca de Caetano no Rio, que agora passa à guarda do...

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