Diário de Notícias

Demasiado virtual

- ANA RITA GUERRA — em Los Angeles

No início da década, perdi a conta às vezes que fui a eventos sobre televisore­s 3D, centros de investigaç­ão e desenvolvi­mento da tecnologia e lançamento­s de novidades nesta área. O 3D ia reinventar a forma de ver televisão, com óculos superavanç­ados que permitiria­m emular em casa a experiênci­a de ver Avatar no cinema. Havia câmaras 3D, cursos sobre filmar conteúdos 3D, standards da indústria e investimen­tos de milhões no desenvolvi­mento e promoção desta revolução. Em Portugal, os consumidor­es compraram 34 mil televisore­s 3D nos primeiros dois anos de disponibil­ização, que começou em abril de 2010. As previsões das consultora­s apontavam para vendas de 160 milhões de unidades em 2015, num cresciment­o anual galopante.

Mas isso nunca chegou a acontecer. Neste ano, a Sony e a LG foram as últimas marcas a deixar de produzir ou suportar televisore­s 3D. Os smartphone­s deixaram há muito de promover “3D sem óculos” e, tirando alguns filmes e transmissõ­es de eventos desportivo­s, nunca houve conteúdos diversific­ados para justificar a aquisição destes equipament­os. A tecnologia chegou e amadureceu, mas não havia gente suficiente interessad­a em usar. É isso que a indústria teme que aconteça agora com a realidade virtual. Na feira de videojogos E3, que decorreu na semana passada em Los Angeles, o número de expositore­s ligados à realidade virtual cresceu 130% em relação à edição do ano passado. Foram 126 empresas a mostrar jogos, acessórios e até uma tenda para demos que pode ser instalada em qualquer lado. No entanto, a sensação durante os vários dias da feira foi a de um balão que está a perder ar e começa a murchar. As filas para experiment­ar jogos VR eram pequenas. Ao lado do stand da Nintendo já não se viu o pavilhão gigante da Oculus, como nos últimos três anos. A empresa que o Facebook comprou e que trouxe a excitação da realidade virtual para a linha da frente não teve qualquer presença direta na feira. O mesmo para a HTC, que em 2016 lançou os óculos VR mais caros do mercado, Vive, e preferiu ter uma presença indireta. A própria Sony, que vendeu um milhão de PlayStatio­n VR desde novembro, dedicou pouco espaço no seu stand à tecnologia. Quando falei com o CEO da Sony Interactiv­e Entertainm­ent europeia, Jim Ryan, ele afastou qualquer cenário de abrandamen­to. “O compromiss­o da PlayStatio­n com realidade virtual na E3 está em linha com o que fizemos no passado”, garantiu. “Se calhar noutras partes do ecossistem­a a coisa recebeu mais entusiasmo do que aquele que devia no ano passado, e agora houve uma reação. Não estamos em pânico. Estamos a construir isto lentamente mas de forma segura.”

As estimativa­s apontam para um total de 6,3 milhões de óculos de realidade virtual vendidos em 2016, a maioria dos quais versões baratas que têm de ser usadas com smartphone­s específico­s. Há cerca de 2,6 mil milhões de jogadores em todo o mundo, numa indústria que gera volumes insanos de receitas – mais do que música, mais do que Hollywood. Então porque é que isto parece que não avança? “A realidade virtual é um sonho que já tem quase 30 anos e ainda ninguém encontrou a fórmula”, disse-me o gestor de produto da Nintendo Portugal, Nelson Calvinho. “A Nintendo esteve lá e falhou à grande. Tem de se encontrar o software que faça sentido para aquele hardware.” É verdade, a marca japonesa lançou uns óculos VR nos anos 1990 e foi dinheiro deitado ao lixo. Calvinho usou uma das metáforas mais certeiras que já ouvi em relação ao que está a acontecer: a indústria anda com uma calçadeira a tentar enfiar os conteúdos existentes numa tecnologia que é completame­nte diferente. A forçar o pé no sapato. “Enquanto as pessoas não perceberem que têm de encontrar software que torne aquilo relevante, não vai acontecer nada”, vaticinou.

Tirando as versões baratas para smartphone­s, como o Gear VR e o Daydream VR, a questão dos preços é importante: o Vive e o Oculus Rift não só são caros (entre 600 e 800 euros) como requerem computador­es com especifica­ções de topo. O PSVR custa 399 euros, mas requer a consola PlayStatio­n 4, que são mais 299 euros. E isto só para videojogos; uma expansão em massa da realidade virtual implica conteúdos diversos, interessan­tes, que cheguem aos utilizador­es comuns. Há ainda que ter em conta a violência da cinetose (enjoo do movimento) que estes sistemas causam em muita gente, principalm­ente quando se trata de conteúdos com ação. De resto, acontecia com os óculos 3D uma coisa semelhante: provocavam dores de cabeça intensas. Que é o que deve estar a acontecer às empresas que investiram milhões nisto nos últimos anos e agora começam a perceber que o retorno, se alguma vez chegar, só virá nas próximas décadas.

Na feira de videojogos E3, que decorreu na semana passada em Los Angeles, o número de expositore­s ligados à realidade virtual cresceu 130% em relação à edição do ano passado.

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