ENTREVISTA JOSÉ FORJAZ
“A ARQUITETURA TEM DE SER SUSTENTÁVEL. HÁ MUITA OBRA QUE É DESPERDÍCIO DE RECURSOS”
Está em Moçambique desde a independência. Continua a ser o seu país? Continua. Aliás, cada vez tenho menos país, considero-me internacional e comecei a questionar os patriotismos porque este mundo está a sofrer muito por isso mesmo. Sou moçambicano de emoção, não de nascimento, e sou português pelas mesmas razões mais o nascimento. Quantos arquitetos ficaram depois da independência? Moçambicanos de nacionalidade assumida ou originária, havia menos de dez quando começámos. Por que é preciso ter arquitetos num país como Moçambique? Pela mesma razão que é preciso ter arquitetos em qualquer parte do mundo. Os arquitetos têm, ou devem ter, uma capacidade única que é a de organizarem espaço. Não são construtores só, como se pensa correntemente. Também são, mas são sobretudo especialistas na organização do espaço, seja a nível vasto, o regional, e esses são planificadores regionais, seja a nível urbano, e esses são urbanistas, seja a nível do edifício, e aí são arquitetos, e mesmo do equipamento do edifício, e são designers. Escolhemos, pela carência absoluta de todas estas especialidades, fazer uma faculdade que desse um pouco de tudo, com os perigos de se ser um pouco superficial em todas as disciplinas. Mas o isolamento a que estariam – e estão – votados os nossos graduados que vão para uma cidade de província onde não têm ninguém, às vezes nem um engenheiro, para os ajudar nos aspetos mais técnicos obrigou-nos – e sinto-me responsável por isso mas fui apoiado – a criar um curso de largo espectro. Ainda hoje se justifica porque o isolamento continua. Temos 25 milhões de habitantes e menos de 400 arquitetos. Portugal tem 25 mil arquitetos. Quem foram os professores no início? Só foi possível com uma oferta da Itália que já antes dava apoio. Quando começámos era só eu e mais uma pessoa não moçambicana, e com a permanência esporádica mas regular dos docentes italianos. Não traziam ideias feitas? Não, porque as pessoas que vieram eram inteligentes. Mas de alguma maneira havia deformações ou formações de pensamento que não estavam em ressonância com a realidade local, em aspetos teóricos. Mas não foi uma dificuldade antagónica, foi uma progressão na compreensão mútua dos contextos. Às vezes dava discussões sérias, chamávamo-nos nomes, mas ficámos muito amigos. Conheceu Samora. Como era ele? Era amigo dele e acho que posso dizer que ele era meu amigo. Era uma pessoa altamente motivante, com um carácter extremamente forte, ativo, com ideias muito claras, em certos aspetos simplistas mas não ingénuas. Não era fácil, era duro quando tinha de ser, mas era caloroso e humano nas relações com os mais próximos, pelo menos. Não é fácil reduzi-lo a duas ou três frases. Devo-lhe muito daquilo que foi a minha aceitação como interveniente e como participante naqueles primeiros dez ou doze anos. Havia preconceitos? Há sempre, e não eram só de ordem racial, eram de ordem política. Sou apolítico de nascença e não me filio em organizações políticas, e isso não era bem tomado. Estava em ressonância com a maioria das posições que a Frelimo ia tomando e não com outras. Mas foram os dez anos que, muito a partir dele, ajudaram a formar-me a mim como personalidade. Concebeu o memorial construído no local onde caiu o avião que vitimou Samora. Ele continua a ser lembrado? Foi uma vida breve mas intensa. Recuso-me a ir lá, visto que os sul-africanos destruíram o que eu tinha feito, tiraram o sentido do isolamento na paisagem, naquela brutalidade visual que penso que tinha conseguido criar. Malangatana foi seu companheiro, seu amigo, aliás construiu a casa dele. Tinham uma relação de irmãos, a embirrar um pouco um com o outro. Ele gostava muito da casa. Nós construímos em conjunto e ele dizia umas coisas. Tinha de ter uma rede para não deixar entrar as cobras, e a gente lá pôs a rede. O Malangatana e eu tivemos uma longa identidade de ideias, de emoção e de amizade. Nunca nos chateámos um com o outro. Ajudámo-nos muito mutuamente, eu em aspetos mais práticos da vida dele, e ele em aspetos mais emocionais e políticos. O que o levou para arquitetura? Gostar de desenhar, de fazer esculturas, perceber que tem todas essas valências e mais as de carácter social, humanísticas. E a influência de uma pessoa muito importante para mim, o escultor Barata Feyo, tio do meu pai. E depois todo o brilho intelectual e a atividade excitante da Escola de Belas-Artes do Porto nos anos 1950/60. Carlos Ramos era o diretor? Sim, ele depois convidou-me para assistente e eu percebi que era estúpido ensinar o que não sabia, preferi ir aprender alguma coisa. Fui muito amigo dele, fiquei a dever-lhe muito. Depois trabalhou no ateliê Conceição Silva. Foi aí que aprendeu? Aprendi em todo o lado, continuo a tentar aprender. Mas aos 17 anos, vi um anúncio a pedir um desenhador para obras públicas. Como só tinha duas cadeiras, concorri, fui fazer um exame, eles aceitaram-me. O meu primeiro mentor de arquitetura foi o Fernando Mesquita [Vila Real, 1916 - Moçambique, 1990]. Era um homem impiedoso. Se eu tinha um risco uma décima de milímetro fora do sítio tinha de fazer o desenho todo outra vez. E como eu ganhava por desenho feito aprendi depressa. Era uma pessoa de grande valor, fez algum do trabalho mais valioso que ficou da arquitetura portuguesa em Moçambique, sobretudo escolas e hospitais, e entusiasmou-me a falar com o Pancho. Pancho Guedes? De quem ele era um amigo particular, uma amizade acidulada dos dois lados, eram engraçados os dois. Passei a ir trabalhar à noite para ele. Aí comecei a aprender as práticas diárias da profissão. Quando cheguei ao Porto, o meu primeiro trabalho foi desenhar as obras da tese de um finalista, e tinha essa profissionalidade que ajudou e desajudou também, porque às vezes quase era mais importante fazer bem feito do que pensar bem. Teve de aprender a soltar-se? Não foi difícil porque o meio era rico. Criei outro amigo que me falta muito, o António Quadros, com quem eu tinha amizade profunda, de grande intercâmbio, de dúvidas, sobretudo. Continuo com grande dúvidas, com outras dúvidas, talvez mais sérias, mais difíceis. Sobre o papel da arquitetura? Por exemplo, como resolver uma arquitetura que tem de ser sustentável. Não era a primeira das determinantes quando pensávamos a arquitetura e tem que ser. Mas os mais artistas fogem com o rabo à seringa. É difícil assumir porque obriga a educar o cliente e a sociedade, e deixar para trás um protagonismo formal perigoso. Há muita obra que é desperdício de recursos universais. A construção serve-se de recursos que são universais, de fora do país. Temos uma responsabilidade que não é de contexto local, é universal. Em Maputo impressionou-me a doçura das pessoas. Mas pareceu-me que a cidade precisa de urbanismo. Não é de urbanismo, está a precisar de administração. A cidade está equipada com documentos técnicos que lhe permitiriam desenvolver-se de uma maneira mais saudável e correta, mas não são seguidos. As decisões são tomadas à revelia dos documentos, o que provoca situações dramáticas. O problema está na administração municipal. Quem manda no espaço são os interesses económicos, pessoais e políticos. Têm na mão os três poderes: o legislativo, o executivo e o judicial. É imbatível. O uso do espaço é definido politicamente e as cidades sofrem disso. Maputo tem um tráfego infernal, a ocupação do espaço é antirracional, e os poucos espaços públicos disponíveis são vendidos a retalho. Há mais decisões inqualificáveis, como fazer uma autoestrada ao longo do mar, permitir parques de estacionamento do lado da praia.
“Samora Machel era uma pessoa motivante, com um carácter forte, ativo, com ideias muito claras, em certos aspetos simplistas mas não ingénuas”
“Malangatana e eu tivemos uma longa identidade de ideias, de emoção, de amizade. Nunca nos chateámos um com o outro, ajudámo-nos mutuamente”
“Maputo precisa de administração. Tem documentos técnicos que lhe permitiriam desenvolver-se de forma saudável e correta mas não são seguidos”