O Camões que faltava a Alegre
Manuel Alegre, com plena e indiscutível justiça, foi distinguido com o Prémio Camões, o mais importante da literatura portuguesa. Foi o 12.º português a recebê-lo e a verdade é que até poderia ter sido galardoado mais cedo porque a sua extensa obra poética e ficcional justificava essa escolha. O Prémio Camões , a cuja atribuição Alegre reagiu com serena alegria, chegou pouco dias após a morte de outro importante poeta da sua geração: Armando Silva Carvalho, que desapareceu com 79 anos, após ter visto ser amplamente reconhecida a qualidade de “A Sombra do Mar”, o seu último livro.
Alegre sempre teve uma intensa vida política, cívica e literária, tendo estado no centro dos grandes combates políticos do seu tempo, determinados e consolidados pelos ideais da liberdade e da democracia.
Recordo-me de o ter visto chegar à Emissora Nacional, logo após o triunfo do MFA em 25 de Abril, para assumir funções na estação pública do Estado, pouco antes de assumir funções como deputado e como dirigente do PS. Recordo-me também da emoção daqueles que, como eu, tinham tido uma intensa actividade de resistência política ao terem na sua presença a voz grave, expressiva e mobilizadora que fora a da resistência na rádio à ditadura de Salazar e Caetano, mas também a voz de um poeta que nunca desistiu de ver um dia as forças libertadoras desembarcarem no Rossio real e poético da nossa ânsia de viver em liberdade.
O primeiro escritor português a ser galardoado com o Prémio Camões foi Miguel Torga, também um símbolo do compromisso da escrita poética com o desejo de liberdade, o desejo profundo e irrenunciável de muitas gerações de escritores portugueses, de Manuel Maria Barbosa du Bocage a Sophia de Mello Breyner ou a Herberto Helder.
Sou da geração que viu Manuel Alegre ser consagrado, aplaudido e também cantado através dos poemas das colectâneas Praça da Canção, de 1965, e O Canto e as Armas, de 1967. Muitos desses textos foram cantados por vozes como a de Adriano Correia de Oliveira, convertendo-se em verdadeiros hinos mobilizadores das nossas energias e sonhos de mudança.
Alegre nunca deixou de estar nos lugares reais e míticos de uma geografia talhada à medida da nossa vontade de retomar os caminhos de Ulisses até à fonte das grandes alegrias que nos motivam como povo e memória.
Ao contrário do que alguns em tempo disseram, Manuel Alegre nunca teve biografia a mais. Viveu com discernimento, lucidez e valentia os grandes combates do seu e do nosso tempo, mostrando que poetas como Pablo Neruda, Robert Desnos, que o tifo vitimou em 8 de Junho de 1945 no campo de concentração de Terezin, que acabara de ser libertado, ou como Louis Aragon, Paul Éluard, Federico García Lorca ou Nazim Hikmet e outros nunca deixaram de confundir os seus destinos poéticos com os combates prioritários de uma vida que quer ser livre.
Duas vezes candidato à Presidência da República, nunca deixou de ver a sua dimensão poética celebrada e aplaudida quando os seus apoiantes publicamente declaravam o seu desejo de o verem sentado em Belém. Não cumpriu esse objectivo mas cumpriu os restantes, escrevendo livros que o fizeram, como Bocage e outros, admirar a vida e a gesta criadora de Camões, voz poética que nunca a adversidade, a doença, a incerteza e a morte conseguiram subverter ou derrotar.
Para muitos, Manuel Alegre conseguiu ser, em vida, um dos heróis do seu tempo, não se acomodando e renovando sempre o sentido da importância da sua obra na ligação com o tempo, com a memória e com a vida. Nesse aspecto, é justo dizer que este Prémio Camões, também atribuído a Maria Velho da Costa, Eugénio de Andrade, Agustina Bessa-Luís e António Lobo Antunes, mas que não distinguiu Urbano Tavares Rodrigues, que partiu com essa mágoa, galardoou uma obra e um escritor. Sempre que se falar de Manuel Alegre, falar-se-á das palavras com que ele anunciou a liberdade e depois a celebrou e partilhou com todos. E foi muito.
Para muitos, Manuel Alegre conseguiu ser, em vida, um dos heróis do seu tempo, não se acomodando e renovando sempre o sentido da importância da sua obra na ligação com o tempo, com a memória e com a vida
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico