Diário de Notícias

O Camões que faltava a Alegre

- POR JOSÉ JORGE LETRIA

Manuel Alegre, com plena e indiscutív­el justiça, foi distinguid­o com o Prémio Camões, o mais importante da literatura portuguesa. Foi o 12.º português a recebê-lo e a verdade é que até poderia ter sido galardoado mais cedo porque a sua extensa obra poética e ficcional justificav­a essa escolha. O Prémio Camões , a cuja atribuição Alegre reagiu com serena alegria, chegou pouco dias após a morte de outro importante poeta da sua geração: Armando Silva Carvalho, que desaparece­u com 79 anos, após ter visto ser amplamente reconhecid­a a qualidade de “A Sombra do Mar”, o seu último livro.

Alegre sempre teve uma intensa vida política, cívica e literária, tendo estado no centro dos grandes combates políticos do seu tempo, determinad­os e consolidad­os pelos ideais da liberdade e da democracia.

Recordo-me de o ter visto chegar à Emissora Nacional, logo após o triunfo do MFA em 25 de Abril, para assumir funções na estação pública do Estado, pouco antes de assumir funções como deputado e como dirigente do PS. Recordo-me também da emoção daqueles que, como eu, tinham tido uma intensa actividade de resistênci­a política ao terem na sua presença a voz grave, expressiva e mobilizado­ra que fora a da resistênci­a na rádio à ditadura de Salazar e Caetano, mas também a voz de um poeta que nunca desistiu de ver um dia as forças libertador­as desembarca­rem no Rossio real e poético da nossa ânsia de viver em liberdade.

O primeiro escritor português a ser galardoado com o Prémio Camões foi Miguel Torga, também um símbolo do compromiss­o da escrita poética com o desejo de liberdade, o desejo profundo e irrenunciá­vel de muitas gerações de escritores portuguese­s, de Manuel Maria Barbosa du Bocage a Sophia de Mello Breyner ou a Herberto Helder.

Sou da geração que viu Manuel Alegre ser consagrado, aplaudido e também cantado através dos poemas das colectânea­s Praça da Canção, de 1965, e O Canto e as Armas, de 1967. Muitos desses textos foram cantados por vozes como a de Adriano Correia de Oliveira, convertend­o-se em verdadeiro­s hinos mobilizado­res das nossas energias e sonhos de mudança.

Alegre nunca deixou de estar nos lugares reais e míticos de uma geografia talhada à medida da nossa vontade de retomar os caminhos de Ulisses até à fonte das grandes alegrias que nos motivam como povo e memória.

Ao contrário do que alguns em tempo disseram, Manuel Alegre nunca teve biografia a mais. Viveu com discernime­nto, lucidez e valentia os grandes combates do seu e do nosso tempo, mostrando que poetas como Pablo Neruda, Robert Desnos, que o tifo vitimou em 8 de Junho de 1945 no campo de concentraç­ão de Terezin, que acabara de ser libertado, ou como Louis Aragon, Paul Éluard, Federico García Lorca ou Nazim Hikmet e outros nunca deixaram de confundir os seus destinos poéticos com os combates prioritári­os de uma vida que quer ser livre.

Duas vezes candidato à Presidênci­a da República, nunca deixou de ver a sua dimensão poética celebrada e aplaudida quando os seus apoiantes publicamen­te declaravam o seu desejo de o verem sentado em Belém. Não cumpriu esse objectivo mas cumpriu os restantes, escrevendo livros que o fizeram, como Bocage e outros, admirar a vida e a gesta criadora de Camões, voz poética que nunca a adversidad­e, a doença, a incerteza e a morte conseguira­m subverter ou derrotar.

Para muitos, Manuel Alegre conseguiu ser, em vida, um dos heróis do seu tempo, não se acomodando e renovando sempre o sentido da importânci­a da sua obra na ligação com o tempo, com a memória e com a vida. Nesse aspecto, é justo dizer que este Prémio Camões, também atribuído a Maria Velho da Costa, Eugénio de Andrade, Agustina Bessa-Luís e António Lobo Antunes, mas que não distinguiu Urbano Tavares Rodrigues, que partiu com essa mágoa, galardoou uma obra e um escritor. Sempre que se falar de Manuel Alegre, falar-se-á das palavras com que ele anunciou a liberdade e depois a celebrou e partilhou com todos. E foi muito.

Para muitos, Manuel Alegre conseguiu ser, em vida, um dos heróis do seu tempo, não se acomodando e renovando sempre o sentido da importânci­a da sua obra na ligação com o tempo, com a memória e com a vida

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

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Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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