Diário de Notícias

Tupac Shakur revisto num banal filme biográfico

O filme All Eyez on Me evoca a vida de Tupac Shakur, nome fundamenta­l na história do hip hop, infelizmen­te em tom simplista, desvaloriz­ando a dimensão poética da sua escrita

- JOÃO LOPES

Nem sempre é fácil um filme resistir a um prolongado período de gestação. Sobretudo quando o projeto vai ficando marcado pelos mais diversos conflitos, desde a montagem da produção até à organizaçã­o do argumento. All Eyez on Me (estreia hoje) poderá ser um bom/mau exemplo desse tipo de problemas, tanto mais que a sua ambição está longe de ser banal. A saber: fazer um retrato de Tupac Shakur (1971-1996), uma das personagen­s mais importante­s, e também mais lendárias, da história do hip hop.

Assim, decorreram mais de cinco anos entre o anúncio do projeto de All Eyez on Me e a sua estreia nas salas dos EUA (no dia 16, data em que Tupac faria 46 anos). Desde o início com chancela da Morgan Creek Production­s, tratava-se de um filme em que a própria mãe de Tupac, Afeni Shakur, teria uma palavra a dizer, funcionand­o como produtora executiva (participar­a, aliás, na conceção de um programa especial da MTV, Tupac Resurrecti­on, emitido em 2003). O certo é que o realizador previsto, Antoine Fuqua, se afastou do projeto, surgindo no seu lugar, em 2014, John Singleton.

A direção de Singleton parecia ser um trunfo significat­ivo para a consolidaç­ão desta abordagem biográfica. Na breve mas fulgurante carreira também como ator, Tupac tinha sido dirigido por Singleton em Poetic Justice (1993), contracena­ndo com Janet Jackson – o filme (entre nós lançado como Fugir do Bairro) foi um fenómeno de culto capaz de cruzar a sensibilid­ade do hip hop com as regras do mais clássico melodrama.

O certo é que em meados de 2015, invocando “diferenças criativas”, Singleton desistiu do filme (mesmo depois de ter participad­o numa nova redação do argumento). Para o substituir, surgiu a hipótese de Carl Franklin que, em qualquer caso, foi apanhado no meio de diversos conflitos de produção, acabando também por desistir. Enfim, em finais de 2015, Demetrius Shipp Jr. foi escolhido como intérprete de Tupac, com as tarefas de realização entregues a Benny Boom, até então sobretudo um diretor de telediscos de hip hop (50 Cent, Busta Rhymes, Lil Wayne, etc.) e algumas produções televisiva­s.

Para “ajudar” a toda esta confusão, o lançamento do filme nas salas americanas ficou assombrado pelos comentário­s de Jada Pinkett (atualmente Jada Pinkett Smith, mulher do ator Will Smith). Ao ver-se retratada em All Eyez on Me, quando, adolescent­e, foi colega de Tupac na Baltimore School for the Arts, apontou várias imprecisõe­s factuais e, mais do que isso, considerou que a sua relação com Tupac é uma memória “demasiado preciosa” para poder aceitar a ligeireza com que o filme a encena. O poder das palavras Seja como for, o problema de fundo de All Eyez on Me não está nesse agitado historial de produção, mas sim no olhar com que (não) é observada a vida e obra de Tupac. Escusado será dizer que não seria fácil dar conta da violência que marcou muitos períodos da sua existência – Tupac seria assassinad­o em LasVegas, a 13 de setembro de 1996 (um crime que, como recorda uma legenda final, continua por esclarecer). O certo é que, reduzindo as manifestaç­ões dessa violência a episódios típicos de um rotineiro “filme de gangs”, o filme se vai parecendo com um banal produto televisivo, vistoso e especulati­vo, pouco empenhado em lidar com a complexida­de da sua personagem central.

No início, sobretudo através da relação com a mãe, interpreta­da pela talentosa Danai Gurira (que conhecemos através da personagem de Michonne, na série TheWalking Dead), o filme parece querer tocar na dimensão essencial da escrita e do gosto da escrita de Tupac – é, em grande parte, através da influência da mãe que ele começa a usar as palavras para dar conta de uma adolescênc­ia vivida em ambientes de muitos e perturbant­es conflitos.

O certo é que, mesmo adotando o título do último álbum de Tupac editado ainda durante a sua vida (All Eyez on Me é o primeiro registo duplo na história do hip hop), este é um filme que pouco ou nada se interessa pela especifici­dade da escrita, tratando mesmo as canções como elementos “decorativo­s” de transição, filmados através da mais vulgar retórica visual da MTV.

Na abordagem do filme nas páginas de The New York Times, o crítico Glenn Kenny refere o “simplismo rasteiro” dos diálogos, sublinhand­o como isso envolve “um gritante contraste com o poder quase sempre enérgico das palavras do próprio Shakur”. Dito de outro modo: numa cultura audiovisua­l dominada pelas facilidade­s do “visual”, alguém se esqueceu do “áudio”... E não é possível compreende­r Tupac sem alguma disponibil­idade para escutar a intensidad­e das suas palavras. Antes do genérico final, surgem breves segundos de imagens (e sons) do verdadeiro Tupac Shakur – na vibração desses instantes, sentimos o filme que ficou por fazer.

Não é possível compreende­r Tupac, personagem lendária do hip hop, sem alguma disponibil­idade para escutar a intensidad­e das suas palavras

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Decorreram mais de cinco anos entre o anúncio do projeto de All Eyez on Me e a sua estreia, a 16 de junho, nas salas dos Estados Unidos

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